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Crítica
14 de Agosto de 2015   Lógica

Validade formal e verdade

Álvaro Nunes

Uma das noções que os alunos têm mais dificuldade em compreender é a de validade. Mesmo depois de termos dedicado algumas aulas a esta noção, um número razoável de alunos comete erros na sua explicação ou aplicação. Tendem a pensar que um argumento com forma válida é o que tem todas as premissas e a conclusão verdadeiras. As linhas que se seguem são dedicadas a mostrar que isto é errado e a esclarecer a noção de validade formal.

Pensemos numa forma válida de argumento, por exemplo, o silogismo disjuntivo. A forma do silogismo disjuntivo é a seguinte:

A ou B.
Não A.
Logo, B.

Com esta forma podemos construir um número ilimitado de argumentos particulares substituindo A e B por afirmações. Por exemplo, posso fazer o seguinte argumento substituindo A por “Chove” e B por “Faz sol”:

Argumento 1:

Chove ou faz sol.
Não chove.
Logo, faz sol.

Ou então este:

Argumento 2:

O livro é bom ou ofereço-o ao meu professor de Filosofia.
O livro não é bom.
Logo, ofereço-o ao meu professor de Filosofia.

Vejamos agora o seguinte: Será que, como o silogismo disjuntivo é uma forma válida, qualquer argumento que construa com a forma do silogismo disjuntivo tem premissas verdadeiras e conclusão verdadeira? Reparemos neste argumento construído com um silogismo disjuntivo:

Argumento 3:

Estou morto ou sou imortal.
Não estou morto.
Logo, sou imortal.

Será que estou morto? Não. E sou imortal? Não. Portanto, a primeira premissa “Estou morto ou sou imortal” é falsa, tal como a conclusão. Mas se essa premissa e a conclusão são falsas e entram num argumento feito com a forma de um silogismo disjuntivo, que é uma forma válida, isso significa que é possível construir argumentos que tenham forma válida e premissas e conclusão falsas. Portanto, o facto de um argumento ter uma forma válida não implica que tenha premissas e conclusão verdadeiras.

Com isto mostrámos que a afirmação “Todos os argumentos com forma válida têm premissas e conclusão verdadeiras”.1 é falsa. Contudo, não é isto que os alunos costumam dizer. O que eles costumam dizer é que os argumentos com forma válida são os que têm premissas e conclusão verdadeiras. Que significa em rigor esta afirmação? Que basta que um argumento tenha premissas e conclusão verdadeira para que a sua forma seja válida, ou seja, que “Todos os argumentos que têm premissas e conclusão verdadeiras têm forma válida”.

Isto não é outra forma de dizer exactamente a mesma coisa? Na realidade, não. Para o compreendermos, vejamos o seguinte: se dissermos, por exemplo, “Todos os seres humanos têm duas pernas” estamos a dizer algo muito diferente de “Todos os seres com duas pernas são seres humanos”. Como toda a gente sabe, a primeira afirmação (salvo anomalias médicas) é verdadeira e a segunda é falsa — pois há muitos seres com duas pernas que não são seres humanos —, pelo que não podem significar a mesma coisa.

Assim, também as afirmações “Todos os argumentos com forma válida têm premissas e conclusão verdadeiras” e “Todos os argumentos que têm premissas e conclusão verdadeiras têm forma válida” têm significados diferentes. Ora, uma vez que, como já vimos, a primeira é falsa, significa isso que a segunda, que corresponde àquilo que os alunos dizem, é verdadeira? Para respondermos a esta questão vejamos o seguinte exemplo:

Argumento 4:

Estou vivo ou sou mortal.
Estou vivo.
Logo, sou mortal.

As premissas são verdadeiras e, tanto quanto podemos julgar, a conclusão também. Podemos então dizer que este argumento tem uma forma (A ou B; A; logo, B ) válida? Se conseguirmos fazer um contra-exemplo, isto é, construir um argumento com a mesma forma, com todas as premissas verdadeiras e a conclusão falsa, não. Vejamos agora este novo caso:

Argumento 5:

Estou vivo ou sou imortal.
Estou vivo.
Logo, sou imortal.

Eis um argumento exactamente com a mesma forma (mas não as mesmas premissas) do anterior, com premissas verdadeiras (“Estou vivo ou sou imortal” é verdadeira mesmo fazendo parte da sua constituição uma falsidade como “Sou imortal”, porque qualquer afirmação da forma “Uma verdade ou uma falsidade” é verdadeira) e conclusão falsa. Este argumento é um contra-exemplo do argumento anterior. Isso significa que a forma de argumento “A ou B; A; logo, B ” não é uma forma válida e que, portanto, o facto de um argumento ter premissas e conclusão verdadeiras não garante que a sua forma seja válida.

Vejamos o que concluímos até agora. Concluímos que as afirmações “Todos os argumentos com forma válida têm premissas e conclusão verdadeiras” e “Todos os argumentos que têm premissas e conclusão verdadeiras têm forma válida” são falsas e que, portanto, nenhuma delas nos diz o que são argumentos com forma válida. O que são então argumentos com forma válida?

Uma resposta trivial é dizer que são os argumentos constituídos com formas válidas. Esta resposta tem, no entanto, a vantagem de chamar a atenção para a relação entre validade e forma de argumento e de mostrar que é importante saber o que é uma forma válida de argumento. O que é então uma forma válida de argumento?

É uma forma com que é impossível construir um argumento particular que tenha todas as premissas verdadeiras e a conclusão falsa. Isto significa que se a forma com que fazemos um argumento for válida e as premissas desse argumento forem todas verdadeiras, então a conclusão desse argumento não será falsa. Mas não significa que todos os argumentos que façamos com uma forma válida tenham todas as premissas e conclusão verdadeiras, pois nada impede que, como fizemos no caso do argumento 3, usemos premissas falsas num argumento com forma válida. Por outro lado, se um argumento tiver todas as premissas verdadeiras e a conclusão falsa, então a forma desse argumento não é válida. São estes últimos casos que procuramos construir quando fazemos contra-exemplos e foi o que fizemos efectivamente no caso do argumento 5.

Outra confusão comum consiste em pensar que os argumentos são verdadeiros. Os argumentos não são verdadeiros nem podem sê-lo. Tudo o que podemos dizer é que a conclusão de um argumento é verdadeira ou falsa. Isto resulta do facto de a conclusão de um argumento ser uma proposição e, como todas as proposições, poder ser verdadeira ou falsa. A verdade e a falsidade são propriedades das proposições — é mesmo esta propriedade que as distingue do significado de outras frases como as perguntas ou as exclamações —, mas os argumentos não são proposições. São conjuntos de proposições relacionadas de modo tal que aquelas que têm a função de premissas, implicam ou crê-se que implicam a conclusão. Isto significa que a relação entre as diferentes proposições de um argumento determinam se ele tem forma válida ou inválida, mas não que seja verdadeiro ou falso, uma vez que, como já dissemos, essa é uma propriedade das proposições e não dos argumentos.

Em resumo, um argumento pode ter forma válida ou inválida; uma proposição pode ser verdadeira ou falsa. A validade é uma propriedade dos argumentos; a verdade e a falsidade são propriedades das proposições. Mas nenhum argumento é verdadeiro ou falso e nenhuma proposição é válida ou inválida. Uma forma de argumento é válida se e só se é impossível construir com ela um argumento particular que tenha todas as premissas verdadeiras e a conclusão falsa. Se for possível, é inválida.

Álvaro Nunes

Notas

  1. É mais comum dizer “Os argumentos com forma válida têm premissas e conclusão verdadeiras” do que “Todos os argumentos com forma válida têm premissas e conclusão verdadeiras”. Embora estas duas frases tenham exactamente o mesmo significado, a última, ao contrário da primeira, torna claro que estamos a falar de todos os argumentos com forma válida.
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ISSN 1749-8457