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Crítica
4 de Março de 2004   Estética

Arte e verdade

Paul Taylor
Tradução de Paulo Sousa

Algumas coisas são verdadeiras no mundo de uma obra literária. No mundo evocado por Madame Bovary é verdadeiro que Emma Ruault se casou com Charles Bovary. Todavia, neste artigo não estamos preocupados com a verdade numa obra de ficção, mas sim com o que significa uma obra de arte dizer a verdade sobre o mundo real ou ser-lhe fiel. As obras de arte representacionais representam estados de coisas, ou objectos, retratados de uma certa maneira. Isto prende-se naturalmente com o conceito de verdade, porque podemos perguntar quer se o estado de coisas representado existe de facto no mundo, quer se um objecto representado existe e se realmente existe da forma como é representado, quer ainda se uma representação de um determinado tipo de coisas nos oferece um exemplo representativo desse tipo de coisas. Se assim for, podemos dizer que a obra é verdadeira, ou verdadeira relativamente a um determinado aspecto.

É frequente uma obra fazer-nos reagir àquilo que é retratado de uma forma semelhante à forma como reagiríamos à coisa real. Somos levados a sentir medo ou compaixão por objectos que sabemos serem meras ficções. Mas uma obra poderá também retratar personagens que reagem de uma certa maneira às situações imaginárias que essa obra invoca, muitas vezes implicando a verosimilhança dessa reacção emocional ou prática de uma pessoa nessa situação, ou que essa seja uma reacção que se pode esperar de um determinado tipo de personagem; assim, é razoável dizer que uma obra é verdadeira se acreditarmos que a acção retratada é verosímil.

Por outro lado, para podermos dizer que uma obra é, de alguma maneira, fiel à vida, temos de saber de antemão como a vida é. Mas o que é interessante é que as obras de arte parecem ser capazes de retratar situações de que tivemos experiência, de tal modo que essa representação parece apoiar-nos quando dizemos que a obra nos revelou (quer dizer, nos ensinou) uma explicação verosímil ou plausível da situação retratada. Também se diz, em especial acerca da narrativa de ficção, que, devido à sua capacidade para descrever várias situações imaginárias alternativas, nos pode elucidar sobre a forma como devemos viver.

É deste modo que podemos analisar a forma como uma obra de arte pode encerrar verdades acerca do mundo real. A partir daqui, coloca-se outra questão (que por vezes se chama “problema da crença”): a de saber se o valor artístico de uma obra de arte está relacionado com o facto de ela ser verdadeira. Se uma obra de arte implica ou sugere que as coisas são de uma determinada maneira, deverei atribuir-lhe maior valor artístico se aceitar que o facto que ele implica é verdadeiro? Por outro lado, deverei pensar que a obra é esteticamente imperfeita se não o aceitar?

1. A literatura como um veículo da verdade: a Poética

A Poética de Aristóteles é um bom ponto de partida para analisarmos a afirmação de que a arte nos informa ou esclarece acerca do mundo real. Ao analisar a tragédia (que, nas palavras de Aristóteles, é uma forma de poesia), ele faz as seguintes afirmações: 1) o enredo é o aspecto mais importante de uma tragédia, consistindo numa descrição de acções que formam uma unidade e 2) que a tragédia (juntamente com outras formas de poesia) é mais filosófica e mais importante que a história, porque faz afirmações universais, em vez de afirmações acerca de acontecimentos particulares.

Apresento agora uma proposta que liga as afirmações 1 e 2. Se aceitarmos o essencial de 1, que o enredo é uma descrição de acções, podemos supor que Aristóteles está a falar das acções dos personagens da história. Um enredo, podemos agora dizer, é uma unidade na medida em que as acções descritas se seguem umas às outras de uma forma natural ou plausível. Aquilo que consideramos plausível depende, claro, daquilo que tomamos como certo acerca do comportamento humano. Aristóteles sugere que um bom enredo é capaz de criar no público uma resposta unânime aos acontecimentos; daí deduz que algumas respostas são praticamente universais, baseando-se em verdades acerca da natureza humana que são “necessárias ou prováveis” — uma expressão que ele emprega repetidamente na Poética. A partir daqui podemos estabelecer um nexo com 2. Por ser construída sobre estes pressupostos universais, pode-se dizer que uma boa tragédia é mais filosófica do que a história, uma vez que inflecte de uma situação particular para o universal. A história limita-se a registar os acontecimentos à medida que ocorrem. Para o historiador que escrupulosamente regista os seus factos, é indiferente se estes são o produto do acaso ou de acções deliberadas, ou se as acções registadas são sãs ou tresloucadas, compreensíveis ou extravagantes. Em contraposição, de acordo com Aristóteles, um enredo trágico é de má qualidade se incluir acasos da natureza ou acções que não possamos compreender através da nossa experiência prévia e pessoal acerca de nós mesmos e de outras pessoas. Nas palavras de Aristóteles, esse é um enredo “episódico” — o termo que ele emprega para classificar uma sequência narrativa cujos elementos estão, como estariam num enredo devidamente unificado, interligados pelo que é “necessário ou provável”.

Tomemos Madame Bovary como exemplo de uma “tragédia”. Poder-se-á dizer que descreve acções que formam uma unidade? Para começar, os leitores de Flaubert são arrebatados pela forma como as acções descritas são motivadas e se relacionam com impulsos humanos que lhe são familiares. Os comportamentos das suas personagens são compreensíveis e plausíveis, tendo em conta os seus temperamentos, as suas histórias e as suas circunstâncias particulares. O objectivo da narrativa de Flaubert é transportar-nos para o interior do desenvolvimento da história; fá-lo pedindo o nosso assentimento para a forma como liga os sucessivos passos do enredo, de maneira a envolver-nos nos destinos das suas personagens, como se elas fizessem parte das nossas vidas. Isto sugere que as narrativas podem tornar-se fontes de informação da forma que se segue. Partindo das “necessidades e probabilidades” que conduzem a narrativa, obtendo o nosso consentimento implícito à medida que avança, Flaubert desenvolve uma situação complexa com um resultado dramático que é novo em relação à nossa experiência e que normalmente exigiria uma explicação. Mas este enredo e este conjunto de personagens permitem-nos ter experiência deste mundo por dentro, de modo que conseguimos ficar a saber o que poderíamos sentir se a situação ficcional fosse real. Ao mesmo tempo, passamos a saber o que Emma sente e, daí, a razão por que ela faz aquilo que faz. Desta forma, alargamos os limites da nossa experiência e aumentamos o alcance da nossa compreensão, porque uma parte do comportamento humano que, de outra forma, nos pareceria estranho ou impenetrável, foi colocado dentro dos limites daquilo que se pode compreender como humano. Onde um breve resumo da macabra e trágica morte de Emma poderia ter gerado incompreensão ou inspirado um juízo moral superficial e banal, a narrativa produz, em vez disso, uma resposta mais próxima da de Flaubert: “Madame Bovary, c’est moi!”.

2. Literatura e consciência moral

Uma vez que a literatura parece capaz de nos dar uma ideia daquilo que sentiríamos numa dada situação, se esta fosse real, ela apresenta-se como um instrumento útil para explorar, através da imaginação, os méritos de diferentes estilos de vida e tipos de sociedade alternativos. Hillary Putnam (1978) afirmou que, uma vez que a escolha entre estilos de vida exige uma resposta humana completa, incluindo a capacidade de sentir, não é propriamente um assunto do âmbito da ciência, uma vez que esta é de carácter especialmente proposicional. (Putnam supõe que armazenamos alguns tipos de informações sob a forma de imagens, mais do que sob a forma de proposições.) A escolha de estilos de vida exige um raciocínio prático, mais do que teórico, sendo aquele processo, tal como este, passível de uma crítica racional. A procura de melhores maneiras de viver parece indicar que a imaginação tem aqui um importante papel — incluindo a imaginação literária. A ideia de Putnam é a de que a literatura deve apresentar estilos de vida ideais como “soluções” para a pergunta sobre como devemos viver, mas que devem desempenhar aí um importante papel. Por exemplo, mostrando-nos o que poderia ser a vida de um determinado tipo de pessoa numa sociedade organizada de uma determinada maneira ou que apresentasse determinadas características imaginárias, pode fazer-nos aperceber de “perplexidades” que nos permitem apurar a nossa reflexão acerca da desejabilidade do estilo de vida apresentado.

A explicação mais substancial da forma como a literatura nos pode esclarecer sobre a forma como devemos viver foi-nos dada por Martha Nussbaum. As suas análises detalhadas de algumas obras literárias — em particular, dos romances de Henry James — foram desenvolvidas de maneira a mostrar que a literatura nos oferece meios para alargar a nossa compreensão moral para lá dos limites da filosofia moral tradicional. “Aos exemplos esquemáticos dos filósofos”, diz Nussbaum, “quase sempre falta a particularidade, o apelo emocional, o enredo cativante, a variedade e a indeterminação da boa ficção; também lhe falta a capacidade, que a boa literatura tem, de fazer do leitor um participante e um amigo” (1990: 46). Só quando os seus vários aspectos são adequadamente representados é que uma questão ética complexa pode tornar-se objecto de uma reflexão clara; então é mais fácil perceber os diferentes valores que estão em jogo e os eventuais conflitos que entre eles existem. Por exemplo, ao transportar-nos para as vidas das suas personagens o romance The Golden Bowl, de Henry James, é capaz de nos mostrar de que maneira as aspirações de Maggie Verver à perfeição moral se tornam um obstáculo ao pleno florescimento do seu casamento; o reconhecimento pleno do seu amor pelo príncipe exige uma postura moral mais complexa que a obriga a abandonar a esperança de uma perfeição moral isenta de culpa. Assim, ela precisa de se confrontar com o facto de a plena expressão do seu amor poder exigir “uma cegueira tragicamente necessária” (1990: 144) — pode vir a exigir-lhe que se afaste daqueles que lhe são próximos, ou até que os magoe.

3. Outras artes

É de esperar que a arte representacional, em especial na literatura, ofereça os exemplos mais claros de obras que, de alguma forma, dizem a verdade acerca do mundo. Mas pode não ser a única forma de arte a oferecer-nos tais exemplos.

Debruçando-se sobre a arte não representacional, Jerrold Levinson defendeu (1990) que há várias maneiras segundo as quais a música, uma forma de arte que é sobretudo não representacional, pode ser adequadamente descrita como verdadeira. Suponhamos que aceitamos que a fúria é uma emoção destrutiva. Levinson sugere que algumas passagens do quarto andamento da sinfonia Pastoral de Beethoven exprimem fúria, e que a fúria é representada como destrutiva. Neste caso, parece natural classificar essas passagens como verdadeiras. Um outro tipo de exemplos surge quando, numa peça musical, a transição de uma tonalidade emocional para outra traz implícita a sugestão de que essa transição é plausível na psicologia humana; e classificamos a música como verdadeira se pensarmos que, deste modo, ela é plausível.

Nelson Goodman defende que todas as artes, representacionais e não representacionais, têm uma função cognitiva (1972). Assim, é um erro associar apenas a ciência aos processos cognitivos e limitar o âmbito da arte à evocação ou expressão de sentimentos. Para ele, a criatividade, tanto na arte como na ciência, consiste no desenvolvimento ou na modificação de elementos no interior de um sistema simbólico. Os símbolos bem-sucedidos iluminam o mundo devido à sua especial aptidão para apresentarem um determinado assunto, recompensando aqueles que os cultivam com a revelação de novas e luminosas maneiras de ver o mundo.

A leitura das ideias de Goodman em conjunto com a obra de Ernest Gombrich sobre as artes visuais (1951) pode ser frutuosa. Gombrich começa por atacar o “mito do olhar inocente”. Ele argumenta que o reconhecimento daquilo que está no nosso campo de visão aquando de uma percepção exige a organização da informação visual: aquilo que vemos é estruturado por aquilo que esperamos ver. Da mesma maneira que as descobertas científicas são precedidas pela formulação de hipóteses bem-sucedidas, a evolução da maneira como compreendemos visualmente o mundo requer algumas modificações inspiradas dos “esquemas” prévios em que se apoia. Gombrich sugere que podemos ver a história da pintura como um processo experimental através do qual as nossas aptidões visuais são gradualmente aperfeiçoadas pelas modificações correctivas que os pintores introduzem nos esquemas de que se dispõe para representar o mundo visível. Em vez de simplesmente supor, sem problematizar, que a nossa compreensão visual reflecte o mundo, fornecendo a pedra de toque que nos permitiria julgar o grau de exactidão de uma pintura, a noção de Gombrich interpreta a pintura como um meio através do qual a compreensão é desenvolvida.

A noção, partilhada por Goodman e Gombrich, de que a arte é um instrumento de percepção, não é isenta de problemas. Mas constitui uma importante evolução na estética do século XX. E foi exposta na obra destes dois filósofos nalgumas das melhores páginas que se podem ler sobre este assunto.

4. A relevância da verdade na arte

Se uma obra de arte supõe a exactidão ou a correcção de uma determinada afirmação, representação, perspectiva ou atitude, deveremos achar que o seu valor artístico aumenta se aceitarmos que as suas afirmações ou representações são verdadeiras, ou que a sua atitude ou perspectiva é exacta ou correcta? I. A. Richards dá-nos a entender que a resposta é negativa, ao escrever sobre a forma como reagimos à literatura:

“A questão de acreditar ou não acreditar, num sentido intelectual, nunca se coloca quando estamos a ler bem. Se, por um mau acaso, ela surgir [...] é porque nesse momento deixámos de estar a ler poesia e passámos a ser astrónomos, teólogos ou moralistas, pessoas envolvidas em actividades muito diferentes”. (1927: 277)

A afirmação de Richards parece apoiar-se na ideia de que a arte é uma categoria especial da actividade humana, com objectivo próprio e, por isso, com os seus próprios critérios de valor. Deste ponto de vista, tal como julgamos a qualidade, por exemplo, da encadernação de um livro pelas normas da encadernação, assim deveríamos julgar a poesia (continuando-se a tratar o caso da literatura) pelas qualidades que fazem da poesia uma actividade diferente das outras: a escolha adequada das palavras, a clara ordem da métrica e do ritmo, a elegância e a unidade do poema no seu conjunto, etc. Mas não é claro que a poesia (ou qualquer outra forma de arte) consista numa actividade autocontrolada, com uma finalidade fixa que a define como poesia, e dogmática ao ponto de pensar que a sua “finalidade” exclui necessariamente a representação precisa daquilo que se passa no mundo. Além disso, é difícil conciliar um ponto de vista como o de Richards com aquilo que até agora tem sido o trabalho dos críticos. Henry James é muito admirado pela sua subtileza moral, e os críticos em geral consideram (e pareceria estranho negá-lo) que esta é uma qualidade que reforça o seu estatuto de romancista sério.

Malcolm Budd (1983) lavrou um importante argumento acerca deste tópico. Ele conclui que o valor artístico de uma obra de arte é sempre intrínseco à experiência que nos oferece. Por isso, não inclui os efeitos benéficos que a obra pode ter nas nossas vidas. Por exemplo, se um romance contém uma visão que poderia iluminar as nossas vidas, o seu carácter revelador pode sustentar o seu valor artístico, mas apenas na medida em que essa visão luminosa organiza a própria experiência da leitura, e não devido aos efeitos educativos da obra. Isto parece correcto, porque alguém poderia valorizar e apreciar uma obra de arte ainda que, devido a sentir-se satisfeito com a sua vida, ou devido a um esquecimento ou a alguma outra particularidade, não chegasse a reagir à obra de uma forma que beneficiasse ou desse orientação à sua vida. Mas esta afirmação não faz uma clivagem entre o valor artístico ou estético, por um lado, e o valor moral e intelectual, por outro. Estes valores não se opõem. Podem bem ser os aspectos intelectuais ou morais de uma obra, entendida como objecto de experiências, os responsáveis por muito do impacto que ela pode ter; se ela apresenta defeitos intelectuais ou morais — imaturidade filosófica, por exemplo, ou atitudes racistas — é provável que atribuamos menos valor às experiências que ela nos oferece. Assim, no que diz respeito à relevância da verdade na arte, podemos de facto atribuir um menor valor artístico a uma obra se não estivermos convencidos da verdade de algo que ela afirma implicitamente acerca do mundo — conquanto a sua incapacidade de nos persuadir diminua o seu valor como objecto de experiências.

Paul Taylor
Publicado em Routledge Encyclopedia of Philosophy, org. Edward Craig (Londres: Routledge, 1998)

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ISSN 1749-8457