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Crítica
11 de Fevereiro de 2004   História da filosofia

Liberdade religiosa e política

Desidério Murcho
Espinosa: Vida e Obra
de Steven Nadler
Tradução de José Espadeiro Martins
Mem-Martins: Europa-América, 2003, 396 pp.

A Cambridge University Press reactivou a sua colecção de biografias de grandes filósofos, na qual há uns anos tinha editado a biografia de Hobbes, da autoria de A. P. Martinich. No espaço de um ano foram publicadas biografias académicas de Nietzsche, Hegel, Kant e Kierkegaard. A biografia de Espinosa da autoria de Steven Nadler, que agora sai em Portugal, coincidiu praticamente com a de Gullan-Whur, na Pimlico. É espantosa a vitalidade editorial da biografia filosófica inglesa.

Espinosa nasceu em 1632 e morreu com apenas 45 anos. Viveu toda a sua vida nos países baixos, em Amesterdão, Rijnsburg, Voorburg e Haia. Ao contrário do mito que o rodeia, não era um solitário que polia lentes e escreveu em reclusão a sua magna obra. Esta ideia popular acerca dos filósofos, aliás, raramente corresponde à verdade; como afirma Mary Warnock, “os filósofos são por natureza faladores e epistolares; só raramente preferem sentar-se a pensar, isolados dos seus pares”. Espinosa mantinha muitos contactos intelectuais e tinha muitos amigos — o que explica aliás o rápido aparecimento, logo após a sua morte, da Ética, uma das obras mais importantes da filosofia ocidental.

O avô de Espinosa era lisboeta e viveu alguns anos na Vidigueira, no Alentejo. Mas foi obrigado a fugir para Amesterdão quando a louca perseguição portuguesa aos judeus se tornou intolerável. Espinosa, todavia, haveria mais tarde de provocar nos próprios judeus o mesmo tipo de fervor religioso que levou a sua família a ser expulsa de Portugal: foi expulso da comunidade judaica e o texto dessa excomunhão é das coisas mais violentas que já li. Religião e tolerância têm tendência para ser como azeite e água: não se misturam.

Espinosa falava português e esta era a língua que se falava em sua casa e nas ruas de Amesterdão, que acolhia uma enorme comunidade judaica proveniente de Portugal. A língua usada nos estudos bíblicos era o hebraico, e o latim era a língua da literatura, da cultura e da ciência em geral. Espinosa dominava todas estas línguas, além do holandês e do espanhol. A sua obra foi escrita em latim, e traduzida para holandês. Durante a sua vida, Espinosa só publicou duas obras.

Os Princípios da Filosofia de Descartes (1663), de Espinosa, é uma exposição “geométrica” da filosofia de Descartes, e foi publicada a pedido dos seus amigos e correspondentes. Esta obra granjeou-lhe logo uma boa reputação entre os livres-pensadores. Efectivamente, Descartes representava na altura a novidade perigosa do pensamento filosófico. Representando um corte profundo com a tradição escolástica anterior, não aceitando argumentos de autoridade e estando aberta aos últimos desenvolvimentos científicos da época, a obra de Descartes era vista com maus olhos e era comum ser leitura proibida nas miseráveis universidades holandesas da altura. E se pensarmos que a Holanda era um dos países mais liberais da Europa, consegue-se perceber melhor o contexto intelectualmente sufocante em que Espinosa viveu. Este contexto, aliás, viria a influenciar decisivamente as suas ideias políticas e religiosas, sendo um defensor intransigente da liberdade religiosa e de pensamento. Por vezes, as pessoas perguntam-se para que serve a filosofia por desconhecerem que muitos dos valores e instituições que herdámos são o fruto, precisamente, do pensamento filosófico mais esclarecido.

Mas a obra que projectou Espinosa além-fronteiras como um filósofo de primeira linha foi o Tractatus Theologico-Politicus (1670). É nesta obra que Espinosa defende exaustivamente a liberdade religiosa e política, usando o seu conhecimento profundo do Velho Testamento para pela primeira vez analisar de um ponto de vista histórico o Pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia.

Espinosa faz parte do grande trio de racionalistas modernos, juntamente com Descartes e Leibniz. Trio este que é habitual opor ao trio de empiristas modernos: Locke, Berkeley e Hume. A filosofia contemporânea é na sua maior parte o fruto da filosofia empirista, mas as suas tremendas limitações estão a tornar-se cada vez mais evidentes e assiste-se hoje a uma reabilitação tímida da filosofia racionalista. A diferença que opõe as duas correntes é esta: enquanto para os racionalistas o conhecimento mais nobre e certo tem origem na razão apenas, os empiristas defendem que a razão nada pode descobrir que não tenha origem nos dados dos sentidos. A grande dificuldade da filosofia racionalista é explicar exactamente como conhecemos, sem recorrer à experiência, as grandes verdades sobre o mundo. E era neste ponto que os empiristas sempre insistiam na sua oposição ao racionalismo. Mas é cada vez mais evidente hoje que a filosofia empirista é incapaz de explicar a origem empírica até de verdades como “Todo o objecto verde tem cor”, quanto mais de aparentes verdades substanciais como “A água é necessariamente H2O”. Kant foi a primeira tentativa de fundir o racionalismo com o empirismo, mas falha precisamente por conduzir ao idealismo e à ideia absurda de que o mundo é uma construção nossa.

As razões que levaram Espinosa a ser excomungado são relativamente simples. Sendo um crente, Espinosa cedo percebeu que a concepção judaica (e cristã) de Deus é absurda. A expressão “o deus dos filósofos” foi usada pela primeira vez para falar do conceito de Deus de Espinosa. O deísmo posterior, muito popular durante o Iluminismo, é um descendente um pouco desfigurado do deus dos filósofos. Espinosa não acreditava na imortalidade da alma, nem nos milagres, nem num deus estilo juiz de última instância, de barbas brancas, sentado num púlpito. Espinosa achava que estas eram formas humanas primitivas de representar Deus. E também não tinha em grande conta as instituições religiosas, com os seus rituais, proibições, hierarquias e anátemas. Não admira que tenha sido rapidamente expulso e encarado como ateu. A concepção que Espinosa nos oferece de Deus é demasiado abstracta para responder às ansiedades dos crentes, que querem precisamente o colorido dos milagres, a maravilha das tarde tranquilas do paraíso a coser meia, e um deus-pai que olha por nós e garante que os mauzões são castigados e os bonzinhos têm direito à sobremesa — e tudo isto sem exigir de nós o esforço de pensar. Esta teologia barata está nos antípodas do conceito de Deus de Espinosa, que era apenas a manifestação da estrita necessidade das leis do universo.

Para Espinosa, tudo o que ocorre está determinado pelas leis necessárias da natureza. E Deus mais não é do que esta natureza inexorável. O pensamento modal de Espinosa é tipicamente racionalista. Como Leibniz, Espinosa defende que só o nosso conhecimento imperfeito nos faz pensar que há contingências no mundo, isto é, coisas que acontecem mas poderiam não ter acontecido. Este tipo de concepção da natureza modal do mundo contrasta fortemente com a concepção empirista segundo a qual, pelo contrário, tudo quanto acontece é perfeitamente contingente. Assim, Espinosa diria que quando chove isso é um acontecimento necessário, fruto das leis inexoráveis da natureza, apesar de poder parecer perfeitamente contingente. Ao passo que um empirista como Hume diria que quando um cometa passa pela trajectória previamente calculada isso é um acontecimento que poderia perfeitamente não ter acontecido, só o nosso fantasioso hábito mental de pensar em termos causais nos faz ter a ilusão de que se trata de um acontecimento inteiramente determinado por causas anteriores.

A vida de Espinosa é uma das mais obscuras. Pouco se sabe dele, do que fazia, ou até qual era a sua aparência. Há um único retrato da época, que surge na capa desta biografia de Nadler, mas pensa-se que não terá sido pintado na presença de Espinosa. Os seus dois biógrafos recentes, Nadler, que acaba de ser editado entre nós, e Gulan-Whur, editada em língua inglesa pela Pimlico em 2000, resolvem este problema de modos distintos. Gulan-Whur dá asas à imaginação e à inferência ousada. Nadler, mais comedido, aproveita para nos apresentar uma história pormenorizada dos tempos de Espinosa, dos seus correspondentes e amigos.

Há qualidades de Espinosa, todavia, que transparecem em ambas as biografias. Espinosa era afável, cultivava a amizade, tinha um grande amor ao conhecimento, e era um talentoso geómetra. O que mais impressionou este crítico, todavia, foi a sua tranquila força de vontade. Espinosa partilha com Schlick e Pitágoras a honra pouco invejável de ter sido dos poucos filósofos da história a ser vítimas de um atentado à sua vida. Mas ao contrário de Schlick e Pitágoras, Espinosa escapou com vida. Na verdade, pouco se sabe deste episódio. Aparentemente, um judeu mais fervoroso achou por bem endireitar as linhas tortas em que Deus escreve, de navalha em punho, mas falhou. Até este incidente capaz de fazer qualquer pessoa mudar de rumo não deteve Espinosa.

A mãe de Espinosa morreu quando ele tinha 6 anos e o seu pai quando ele tinha apenas 22. Herdou o negócio do pai e geriu a coisa o melhor que conseguiu, mas cedo deixou o negócio para se dedicar ao estudo. É um caso raro de alguém que renunciou realmente aos bens materiais para se tornar filósofo. Viveu o resto da vida de forma muito modesta, mas, tanto quanto se sabe, relativamente confortável. Alguns amigos e correspondentes ajudavam-no quando podiam. E vivia de dar explicações. Granjeou fama também como polidor de lentes, um trabalho onde podia aplicar os seus conhecimentos de óptica.

Descartes é um dos filósofos mais claros e lógicos da história, mas Espinosa levou a exigência de rigor de Descartes às últimas consequências. Concebeu a filosofia como uma espécie de geometria, com os seus axiomas, postulados, teoremas, corolários, definições e proposições. Não se pode dizer que o resultado tenha a elegância ática de Descartes ou Russell, mas é sem dúvida um monumento a uma forma rigorosa de pensar filosoficamente.

Espinosa começou por estudar profundamente Descartes. As suas explicações sobre a filosofia cartesiana eram célebres e atraíram um grupo de estudantes entusiásticos. Mas o pensamento de Espinosa cedo começou a tornar-se autónomo. E mais uma vez foram os seus amigos e estudantes que o estimularam, lendo criticamente os seus manuscritos, levantando-lhe dificuldades, pedindo-lhe esclarecimentos.

Depois da sua morte, Espinosa foi durante um século o bobo da corte: o filósofo mais comentado e menos lido. Bayle, Hume, Berkeley e Locke sentiram necessidade de mostrar que as ideias ateias de Espinosa eram tolas e que nem mereciam atenção. Mas, de todos, só Bayle mostra ter lido realmente o filósofo, apesar de o ter interpretado mal. Kant, no seu imenso estudo, ignora Espinosa. E até Leibniz, que chegou a visitar Espinosa, tratou de tentar que as suas ideias fossem apagadas da história. Mas as ideias são viroses que podem adormecer durante séculos para voltar a acordar com mais força. Lessing, em 1780, choca os seus pares declarando-se discípulo de Espinosa. Goethe apaixona-se pelas ideias do judeu. E só então se começa a fazer alguma justiça ao pensamento de Espinosa — pelo menos no sentido de se ler a sua obra com atenção.

É impressionante o resultado do preconceito religioso. Só porque Espinosa defendia uma versão extremamente abstracta de Deus, era considerado ateu. Porque não acreditava na vida além da morte, era considerado uma ameaça. Porque achava que era a vida terrena que devia ser bem vivida, era considerado uma ameaça à ordem social. Contudo, Espinosa era apenas um investigador honesto, que procurava a verdade e defendia as suas ideias com o mais importante instrumento inventado por mão humana: a argumentação cuidada. A melhor homenagem que podemos prestar a Espinosa não é, pois, a repetição acrítica das suas palavras, as interpretações interpretantes, a desocultação das vertentes ocultas do seu pensar, mas antes a simples discussão crítica, directa e clara das suas ideias — o que os seus próprios amigos faziam, para seu deleite.

Desidério Murcho
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ISSN 1749-8457