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23 de Julho de 2016   Filosofia

O que é a filosofia?

Desidério Murcho

O objectivo destas páginas é não apenas responder à pergunta do título, mas também fornecer alguns instrumentos importantes para quem chega à filosofia pela primeira vez. Este texto será por isso do interesse, espero, de estudantes, professores e pessoas que querem realmente saber o que é afinal a filosofia.

Definições

Para poder responder à pergunta “O que é a filosofia?” terei de falar primeiro de definições. Tenho de falar de definições porque quando as pessoas perguntam “O que é a filosofia?” estão em geral à espera de um tipo particular de definição. A definição que as pessoas têm em mente é uma definição explícita. Uma definição explícita é algo como isto:

Uma pessoa solteira é uma pessoa que não é casada.

As definições explícitas são, na verdade, raras.

Ninguém sabe definir bem e explicitamente a física — ou, pelo menos, é muito difícil fazê-lo. Dizer “A física é a ciência que estuda os fenómenos físicos” não adianta grande coisa; nós também podemos dizer que “A filosofia é a prática intelectual que estuda os problemas filosóficos”. A primeira definição não é muito satisfatória porque se não soubermos o que é a física é pouco provável que saibamos o que são realmente fenómenos físicos e como se distinguem tais fenómenos dos fenómenos não-físicos. A segunda também não é muito satisfatória porque é pouco provável que quem não sabe o que é a filosofia saiba o que são realmente os problemas filosóficos e como se distinguem tais problemas dos problemas não-filosóficos.

Do facto de sermos incapazes de apresentar uma boa definição explícita de uma dada noção não se segue que não saibamos do que estamos a falar. Afinal, sabemos do que estamos a falar quando falamos de física, mas poucos de nós são realmente capazes de definir bem a física. E o mesmo acontece com imensas noções. Por exemplo, eu não sei definir bem o que é a cor azul; mas sei reconhecer a cor azul e diferenciá-la das outras cores — apesar de haver casos em que hesito, claro; quando estou perante um azul-esverdeado, não será antes um verde-azulado? Mas os casos óbvios são suficientes para eu poder afirmar que sei do que estou a falar quando digo que o céu é azul.

Mas como posso eu saber o que é a cor azul ou a física se não sei definir bem explicitamente nenhuma dessas noções? Bom, posso saber o que é a cor azul ou a física apesar de não saber definir bem explicitamente nenhuma dessas noções porque as definições, em geral, não são tudo o que há para nos ajudar a compreender as coisas, e porque, em particular, há outro tipo de definições além das explícitas.

Por exemplo, eu aprendi a distinguir os objectos azuis dos objectos de outras cores sem que ninguém me tenha fornecido uma definição explícita da cor azul. Os psicólogos cognitivos poderão estudar em pormenor como se dá o processo da aprendizagem das cores, mas não é isso que interessa agora. O que interessa é que, seja qual for o processo, esse processo não envolveu uma definição explícita. Provavelmente, envolveu apenas aquilo a que em filosofia e lógica se chama “definição implícita”: se uma pessoa que não sabe o que é a cor azul mo perguntar, eu posso apontar para vários objectos que exibam um azul bem vivo e dizer que esses objectos são azuis. Eu nunca disse explicitamente o que era o azul. Mas a outra pessoa compreende o que eu quero dizer. É isto a definição implícita.

A definição implícita ocorre quando alguém me pergunta o que é X e eu, em vez de dizer “X é Y” aponto apenas para vários XX, ou exibo vários contextos diferentes em que o termo “X” é usado. Ilustremos este último tipo de definição implícita: muitas vezes, ao lermos um romance, deparamo-nos com certos termos que desconhecemos. Todavia, pelo contexto, percebemos do que se trata: pode ser, por exemplo, um termo raro que refere certos estados de espírito. A este tipo de definição implícita chama-se “não-ostensiva” ou “contextual”. Ao outro tipo de definição implícita, a que apresenta objectos que são X para explicar o que o termo “X” quer dizer, chama-se “ostensiva”.

Eis uma curiosidade: há por vezes a tendência para pensar que só as definições explícitas são as “verdadeiras” definições. Mas não há qualquer razão para pensar isso. Na verdade, podemos desenvolver métodos extremamente rigorosos, em lógica, de definições implícitas contextuais. Eu posso apresentar um sistema de lógica em que nunca defino explicitamente a condicional nem a negação; mas a totalidade do sistema constitui uma definição implícita extremamente rigorosa da condicional e da negação — a condicional e a negação são aqueles operadores que têm as propriedades que o meu sistema lógico exibe.

Caracterizações

Voltemos à física e à filosofia. Uma definição implícita muito simples de física é dizer que a física é o que os físicos fazem e o que está escrito nos livros de física. E podemos dizer o mesmo relativamente à filosofia. E, na verdade, esta é a melhor definição que podemos ter de física ou de filosofia: a prova do pudim, como se diz por vezes, consiste em comê-lo. A melhor maneira de saber o que é a física é estudar física; a melhor maneira de saber o que é a filosofia é estudar filosofia.

Mas isto é injusto. Como pode alguém decidir se está interessado em física ou em filosofia sem antes saber qualquer coisa sobre isso? Terá uma pessoa de estudar física ou filosofia durante dois anos para depois saber se realmente estava interessado? Não poderemos dizer nada à partida que ajude as pessoas? Teremos de as mandar ler manuais de física ou de filosofia para poderem perceber do que tratam tais coisas? Claro que não. Isto seria ridículo.

Apesar de uma definição implícita de filosofia ou de física ser a melhor maneira de ficar a saber realmente o que é a física ou a filosofia, podemos no entanto destacar algumas características mais importantes destas disciplinas e explicar, de forma não exaustiva, em que consiste o estudo da física e da filosofia. Chama-se a isto “caracterização”. Fazemos isto muitas vezes quando não somos capazes de definir algo, nem explícita nem implicitamente.

Por exemplo, eu não sei definir explicitamente o estilo de uma grande escritora como Marguerite Yourcenar; e se estiver a falar com um amigo posso não ter um livro desta autora à mão para lhe mostrar alguns parágrafos e páginas memoráveis. Mas posso caracterizar o estilo dela. Posso destacar algumas das características mais importantes do seu estilo. Claro que isto não será uma definição porque muitos outros escritores poderão ter algumas destas características ou mesmo todas. Mas estas características de algum modo conseguirão dar uma ideia do que é o estilo de Marguerite Yourcenar, sem que o meu amigo tenha de ler a obra completa da autora e sem que eu tenha de lhe ler alguns dos seus melhores trechos.

E é isso que vou fazer para responder à nossa pergunta. O que é a filosofia? A minha resposta irá consistir em apresentar algumas das características mais importantes da filosofia. Mas vou fazer mais: darei vários exemplos de problemas filosóficos. Assim, com uma caracterização e recorrendo a exemplos, espero dar uma boa ideia do que é a filosofia. Acresce a isso que estarei ao mesmo tempo a fornecer ao leitor alguns instrumentos filosóficos básicos — como as noções de “definição” e “caracterização” que já apresentei — que lhe permitirão dar os primeiros passos na filosofia.

Teorias e afirmações

Das várias actividades humanas, como a religião, a arte, a ciência e a filosofia, nas duas últimas dedicamo-nos a resolver problemas. A física ocupa-se dos problemas físicos, a matemática dos problemas matemáticos e a filosofia dos problemas filosóficos. Qualquer destas disciplinas apresenta teorias, que pretendem resolver os problemas de que se ocupam. A física apresenta teorias físicas, a matemática teorias matemáticas e a filosofia teorias filosóficas. Chama-se por vezes “teses” às teorias filosóficas; podemos também chamar-lhes “doutrinas”. Não importa, desde que saibamos do que estamos a falar.

Mas do que estamos nós a falar quando falamos de teorias? O que é uma teoria? Bom, uma vez mais, talvez não seja possível oferecer uma definição explícita de “teoria”. Mas é pelo menos possível apresentar um conjunto de características salientes. Aí estão elas: em primeiro lugar, as teorias não podem confundir-se com as coisas nem com os fenómenos. A teoria da relatividade de Einstein não é um fenómeno físico; a teoria de Einstein procura explicar vários fenómenos físicos. Uma teoria é constituída por afirmações. Mas o que quer dizer “afirmação”?

Uma afirmação é algo como isto: “Nenhum objecto pode viajar mais depressa do que a luz”. Promessas, perguntas e exclamações não são afirmações: “Prometo dizer toda a verdade”, “Quem foi Aristóteles?” e “Fecha a porta!” não são afirmações. Uma afirmação é o que uma frase declarativa com sentido nos diz. Uma frase como “O João é boa pessoa” diz-nos que o João é boa pessoa. Claro que há frases declarativas que não têm sentido: “As dores de cabeça são muito salgadas” é uma frase declarativa, mas não parece realmente afirmar coisa alguma. Em filosofia, dizemos que uma frase destas não tem sentido ou é absurda — é uma frase que não tem qualquer valor de verdade. Não se trata apenas de nós não sabermos qual é o valor de verdade que tem — não se trata apenas de não sabermos se a frase é verdadeira ou falsa. É mais forte do que isso. A frase não tem valor de verdade algum. É muito diferente da frase “Há água em Marte” que é uma frase verdadeira ou falsa, apesar de ninguém saber se é verdadeira ou falsa.

Uma das características de qualquer actividade — intelectual ou não — é o facto de dar um significado especial e muito preciso a certas palavras ou expressões. Isso acontece na ciência, nas artes, na religião e em várias actividades profissionais. Isto não quer dizer que estejamos a reformar a linguagem, ou a usar a linguagem de uma forma falaciosa e propositadamente confusa. O uso técnico de certos termos em filosofia é um recurso comum a outras actividades e que nos ajuda a fazer melhor o nosso trabalho — mas implica da nossa parte que sejamos capazes de dominar o sentido especial em que usamos esses termos, se não quisermos que a nossa actividade seja uma caricatura da verdadeira filosofia. Por exemplo, em física, o termo “massa” tem um significado bastante preciso e que não coincide com o significado que, no dia-a-dia, damos a esta palavra. Em filosofia, os termos “absurdo” e “sentido” são usados de um modo ligeiramente diferente do habitual. No dia-a-dia, se eu afirmar uma contradição, como “Marco Aurélio foi um filósofo e não foi um filósofo”, a nossa primeira reacção é pensar que estamos a querer dizer que, de um certo ponto de vista e relativamente a certos aspectos, Marco Aurélio foi um filósofo, mas que de outros pontos de vista e relativamente a outros aspectos, Marco Aurélio não foi um filósofo. Mas se insistirmos que não é isso que queremos dizer, mas antes que ele foi e não foi um filósofo, independentemente dos pontos de vista e dos aspectos que tivermos em mente, a nossa reacção natural é exclamar “Isso é absurdo!” ou “Isso não faz sentido!”.

Usamos estas mesmas expressões para adjectivar afirmações claramente falsas. Se eu disser que a água do mar é óptima para matar a sede, a reacção é a mesma: “Isso é absurdo!” ou “Isso não faz sentido”. Do ponto de vista do uso técnico que se faz em filosofia do termo “sentido” ou “absurdo”, uma afirmação só não tem sentido (isto é, só é absurda) quando não é susceptível de ter valor de verdade. Assim, a afirmação “Marco Aurélio foi um filósofo e não foi um filósofo” não é uma afirmação absurda: é uma afirmação com sentido. É uma afirmação com sentido visto que é falsa — na verdade, é necessariamente falsa. Dado que é falsa, tem um valor de verdade; dado que tem um valor de verdade, tem sentido. O mesmo acontece com a afirmação “A água do mar é óptima para matar a sede”.

Do ponto de vista popular ou comum, dizemos que uma afirmação é absurda quando é, do ponto de vista conversacional, inútil. Ora, as frases necessariamente falsas e as frases obviamente falsas são, geralmente, inúteis do ponto de vista conversacional — isto é, não constituem uma contribuição construtiva para uma conversa. Daí que tenhamos tendência para pensar que não têm sentido.

As frases que nos interessam são as que exprimem afirmações susceptíveis de serem verdadeiras ou falsas, ainda que não saibamos se são verdadeiras ou falsas — muitas vezes, o objectivo é mesmo tentar descobrir se são verdadeiras ou falsas. Por exemplo, não se sabe se Deus existe ou não — esta é uma questão filosófica tradicional. Mas só faz sentido discutir esta questão se acharmos que a frase “Deus existe” exprime realmente uma afirmação; se não exprime uma afirmação nada há para discutir, porque a frase não pode ser verdadeira nem falsa.

Mas não será que as frases exprimem muitas outras coisas, além do que exprimem literalmente? Claro que sim. A frase “Deus existe” pode exprimir um anseio ou esperança, ou pelo contrário uma posição irónica perante o mal que grassa no mundo. As frases podem exprimir muitas coisas. Mas na discussão filosófica interessa-nos também o seu sentido literal, e não apenas os seus sentidos laterais. Fugir do sentido literal das frases e pretender que só os sentidos laterais são importantes é uma visão redutora da filosofia que contraria a tradição filosófica e que em nada contribui para a discussão clara, criativa e crítica dos problemas da filosofia.

O facto de precisarmos de saber o que exprimem literalmente as frases da filosofia obriga-nos a evitar tanto quanto possível as ambiguidades e as vaguezas. Uma frase é ambígua quando exprime mais de uma afirmação. Se eu disser “A filosofia consiste na sua história” posso estar querer afirmar duas coisas completamente diferentes: ou que o trabalho filosófico consiste apenas em fazer a história do que se fez; ou que o trabalho filosófico que se faz fica inscrito na história. Para discutirmos ideias — em filosofia como em tudo o resto — é muito importante a precisão na linguagem: temos de evitar tanto quanto possível as ambiguidades.

Por vezes, o discurso “filosófico” de algumas pessoas cultiva a ambiguidade, por acharem que é mais “rico”. Mas isto é uma ilusão. A verdadeira riqueza discursiva e filosófica resulta do valor das ideias defendidas e não do facto de não se saber bem o que se está a defender porque se defendem várias coisas, muitas vezes opostas, ao mesmo tempo. Pelo contrário, este modo de proceder é empobrecedor porque é redutor — reduz a filosofia a um jogo de palavras. A filosofia não é um jogo de palavras; a filosofia não é um jogo. A uma pessoa sem preparação filosófica a filosofia pode parecer um jogo, mas isso é só porque não tem preparação filosófica; se eu ler um texto de medicina do século XVI, porque nada sei de medicina, também me vai parecer que se trata apenas de um jogo de palavras inconsequente. Mas isso é uma ilusão.

Além da ambiguidade, temos também de evitar a vagueza. Uma frase é vaga quando não se sabe que afirmação está a exprimir. Isso acontece realmente muitas vezes em filosofia, e isso pode dar uma vez mais às pessoas a ideia de que a vagueza é uma propriedade a cultivar em filosofia. Uma vez mais, isso resulta de não se ter uma preparação filosófica adequada e, uma vez mais, isso é uma perspectiva redutora da filosofia. Se queremos pensar, reflectir e ser críticos, temos de saber acerca do que estamos exactamente a pensar. Mas se a frase que temos perante nós for de tal modo vaga que não conseguimos saber o que quer essa frase dizer exactamente, então a discussão não pode prosseguir.

Em filosofia há uma exigência de clareza. A ambiguidade e a vagueza são incompatíveis com a clareza. Logo, devemos evitar a ambiguidade e a vagueza. Em filosofia há também uma exigência de honestidade. Mas a ambiguidade e a vagueza não são compatíveis com a honestidade. Se eu nunca me comprometer realmente com qualquer afirmação porque o que digo é sempre vago e ambíguo, a minha posição será sempre irrefutável. Mas a honestidade exige que apresentemos as nossas ideias de forma a que as outras pessoas as possam avaliar criticamente. Logo, devemos ser claros.

Muito bem. Já compreendemos melhor o que quer dizer “afirmação”. Uma afirmação é o que é expresso por uma frase declarativa que tenha sentido ou valor de verdade (independentemente de nós sabermos se a frase é verdadeira ou falsa). Fala-se por vezes de proposições em vez de afirmações. Há uma diferença subtil entre as duas coisas, havendo até filósofos que apostam forte contra a ideia e que existem proposições. Mas essa diferença não nos interessa agora. Basta-nos perceber que duas frases diferentes podem exprimir a mesma afirmação ou proposição: as frases “Portugal é um país pobre” e “Portugal is a poor country” exprimem a mesma afirmação ou proposição. E uma mesma frase pode exprimir diferentes afirmações: a frase “Hoje choveu em Lisboa” pode exprimir a afirmação ou proposição de que no dia 30 de Junho de 2000 choveu em Lisboa, se for proferida nesse dia, ou pode exprimir a afirmação ou proposição de que no dia 3 de Dezembro de 1999 choveu em Lisboa, se for proferida nesse dia.

Consistência e verdade

Agora compreendemos melhor o que é uma teoria, porque compreendemos melhor o que é uma afirmação. Uma teoria é constituída por um conjunto de afirmações. Mas nem todos os conjuntos de afirmações são teorias. As teorias são conjuntos de afirmações que procuram resolver problemas ou explicar fenómenos. Uma vez que quaisquer conjuntos de afirmações têm certas propriedades lógicas, as teorias também têm essas propriedades.

Uma dessas propriedades é a consistência. A consistência é uma propriedade de duas ou mais afirmações. Duas ou mais afirmações são consistentes quando podem ser todas verdadeiras. Não quer dizer que sejam realmente todas verdadeiras; significa apenas que podem ser todas verdadeiras — mas talvez sejam todas falsas. Eis um conjunto de afirmações consistentes:

Dificilmente quereríamos que estas duas afirmações constituíssem uma teoria, claro. São afirmações tolas. Mas o que nos importa agora é que estas duas afirmações são consistentes — apesar de serem ambas falsas. Já se vê que o que interessa nas teorias não é apenas que elas sejam consistentes; interessa que sejam verdadeiras.

Por vezes diz-se que uma teoria é “consistente com os factos”. Isto, claro, é uma forma popular de falar. Podemos falar assim, desde que compreendamos bem que, a rigor, uma teoria não pode ser consistente com os factos porque os factos não são afirmações e a consistência é uma propriedade apenas de afirmações. O que se quer dizer quando se diz que uma teoria é consistente com os factos é outra coisa; quer-se dizer que essa teoria é consistente com as descrições dos factos. Por exemplo, o Holocausto foi um facto — um facto cujo horror é difícil exprimir. Mas não se pode confundir o facto em si com uma descrição do facto.

Já vimos que a consistência de uma teoria não garante a sua verdade; mas nem no sentido popular de “consistência com os factos” a consistência de uma teoria garante a sua verdade. Vejamos porquê.

Pensemos na seguinte afirmação: “Os animais não podem ter direitos”. Esta afirmação é com certeza consistente com os factos. Isto é: não há descrições de factos que sejam inconsistentes com esta afirmação. Mas daí não se segue que esta afirmação seja verdadeira. Uma maneira fácil de verificar isso é pensar na afirmação contrária: “Os animais podem ter direitos”. Como também não há descrições de factos que sejam inconsistentes com esta afirmação, também ela teria de ser verdadeira, se tudo o que bastasse para a verdade fosse a tal “consistência com os factos”. Mas nesse caso teríamos duas afirmações contrárias que seriam verdadeiras. Mas isto é absurdo, porque se duas afirmações são contrárias, não podem ser ambas verdadeiras. Logo, não é verdade que a “consistência com os factos” garanta a verdade das teorias.

Algumas pessoas têm tendência para pensar que tudo o que conta nas teorias filosóficas é serem consistentes. Mas já vimos que a consistência de uma teoria não garante a sua verdade. Quem pensa isto está a fazer uma confusão, que resulta talvez do facto de, no caso das teorias das ciências empíricas, a “consistência com os factos” garantir a verdade de uma teoria. Mas, precisamente, a filosofia não é uma ciência empírica. Mas o que quer isto dizer?

O carácter conceptual da filosofia

Pensemos outra vez numa afirmação como “Nenhum objecto pode viajar mais depressa do que a luz”. As afirmações das ciências empíricas são afirmações do género desta: afirmações que se referem ao mundo que podemos observar pelos sentidos ou que podemos inferir a partir de observações e medições complicadas realizadas com instrumentos como um espectrómetro ou um radiotelescópio. Mas por mais que façamos medições e observações não iremos descobrir se os animais têm direitos, nem se Deus existe, nem se há números.

Ao contrário da física e da biologia, a filosofia não tem um carácter empírico; é um estudo conceptual. Neste aspecto, a filosofia é mais parecida com a matemática, que também não é uma disciplina empírica. Mas a filosofia distingue-se da matemática por várias razões. Em primeiro lugar, não dispõe de métodos formais de demonstração, como a matemática; em segundo lugar, não se ocupa do tipo de problemas de que se ocupa a matemática. Mas de que tipo de problemas se ocupa afinal a filosofia?

Uma vez mais, o melhor é dar exemplos e apontar algumas das características mais salientes dos problemas filosóficos típicos. Pensemos, por exemplo, em Deus. Os cristãos têm uma dada concepção de Deus, os muçulmanos outra e os hindus outra ainda. E há muitas mais, tantas quantas as religiões. As religiões partem de certas verdades reveladas pelos seus profetas e inscritas nos seus livros sagrados; procuram descobrir a verdadeira natureza de Deus e encontrar o caminho da salvação. Mas nada disso são problemas filosóficos. A filosofia não cultiva dogmas, como a religião; a filosofia faz o contrário: procura destruir dogmas. Os cristãos, muçulmanos e hindus, partem do princípio de que existe Deus. A filosofia pergunta: mas que razões temos para pensar que existe Deus? E, admitindo que existe um deus sumamente bom e criador, omnisciente e omnipotente, como se explica a existência do mal? A filosofia faz as perguntas difíceis que muitas pessoas gostariam de calar, e que efectivamente têm muitas vezes conseguido calar ao longo da infeliz história humana. Podemos dizer, poeticamente, que a filosofia é um grito de liberdade contra a opressão do dogma. E nisto, uma vez mais, a filosofia é semelhante à ciência.

O que distingue os problemas da filosofia dos problemas da ciência é o seu carácter conceptual, a sua generalidade e a inexistência de fronteiras precisas. Os problemas da matemática são também bastante gerais e em grande medida conceptuais — mas têm fronteiras muito precisas. Não se pode determinar matematicamente se os animais têm direitos; não se pode determinar matematicamente se Deus existe — e nem sequer se pode determinar matematicamente se os números existem independentemente de nós. Qualquer problema com suficiente generalidade, de carácter conceptual e para a solução do qual não exista qualquer ciência pode ser um problema filosófico. Os problemas da matemática têm fronteiras muito claras: têm de poder ser resolvidos pelos métodos formais da matemática. Em filosofia, pelo contrário, não há métodos formais para resolver problemas.

Irei de seguida dar alguns exemplos de problemas típicos da filosofia. Antes, porém, quero esclarecer desde já uma confusão. Essa confusão é a seguinte: há certas correntes irracionalistas em filosofia, surgidas no século XIX, que defenderam o fim da filosofia — falam dramaticamente da “morte da filosofia”. O que isto quer dizer é o seguinte: estas pessoas não acreditam que seja possível alcançar qualquer tipo de resultados interessantes pela reflexão filosófica. É como se estivessem intoxicadas pelo positivismo do século XIX, que afirmava que um dia todo o conhecimento seria matemático e preciso como a física. Uma vez que a filosofia não é de modo algum como a física, essas pessoas pensaram que a filosofia era um projecto sem futuro.

Esta ideia, como todas as ideias filosóficas, deve ser discutida às claras, com a nossa inteligência crítica, em vez de ser subterraneamente transmitida como se fosse consensual. E é claro que não é consensual. Nunca se produziu tanta filosofia de tanta qualidade como hoje em dia; na verdade, produziu-se mais filosofia nos últimos 60 anos do que em toda a história da filosofia. É caso para dizer que a filosofia está bem viva.

Mas eu não quero discutir aqui esta ideia da “morte da filosofia”, que paira não como uma ideia claramente articulada, mas como um pressuposto turvo do qual não se tem bem consciência. O que quero fazer é mostrar como esta ideia ajuda a lançar a confusão, desvirtuando a filosofia e transformando-a num parente pobre de disciplinas respeitáveis como a psicologia, a sociologia, a antropologia ou os estudos literários. Se temos a filosofia como profissão e achamos que a filosofia morreu, deveríamos pelo menos ser consequentes e abandonar completamente a nossa profissão. Ao invés, o que se verifica é que se cultivam as especulações antropológicas, sociológicas, etc., sem qualquer base científica, ou que se transforma a filosofia em crítica literária de má qualidade.

Uma das características da filosofia é o facto de não ser uma investigação empírica, como já sublinhei; para saber se os animais têm direitos ou se Deus existe, não tenho de fazer trabalho científico de campo, não tenho de fazer experiências em laboratórios, nem tenho de elaborar inquéritos, nem tenho de fazer estatísticas; limito-me a pensar. Posso ter de usar dados empíricos fornecidos pelas ciências; mas não compete à filosofia fazer o levantamento desses dados.

Este modo de proceder tradicional da filosofia, que resulta da sua natureza conceptual, acaba por contribuir para pseudo-investigações de quem não sabe distinguir os problemas susceptíveis de serem estudados pela filosofia dos problemas que só com alguma investigação empírica podem ser abordados de forma respeitável.

Repare-se na seguinte distinção crucial: todos nós temos opiniões sobre vários aspectos do mundo que nos rodeia. Eu vou a um país estrangeiro e formo uma ideia intuitiva sobre o carácter das pessoas desse país, comparando-as com as pessoas do meu próprio país. A formação deste tipo de opiniões é inevitável; mas não se pode confundir isto com ciência. Ninguém pode dizer, só porque visitou durante três anos a Índia, que os indianos são em geral mais honestos do que os portugueses. Este resultado não oferece quaisquer garantias; é suficiente para animar conversas de café com os nossos amigos; mas basear um estudo sério sobre estas observações não-sistemáticas é uma tolice.

Se temos de basear uma reflexão filosófica sobre dados empíricos, esses dados empíricos têm de ser fidedignos; não podem resultar da mera observação de senso comum. Isso é apenas má sociologia ou má psicologia. Isso não é um estudo sério e honesto. O que é irónico é que abundam os problemas filosóficos em que podemos reflectir sem termos de usar informação empírica e só as doutrinas da “morte da filosofia” afastam as pessoas desses problemas — fazendo-as procurar novos problemas que, no entanto, não podem ser seriamente estudados sem usar os métodos empíricos da sociologia ou da psicologia.

Outra consequência desastrosa das doutrinas da “morte da filosofia” é a ideia de que a filosofia é uma arte. Uma vez mais, podemos defender esta ideia filosófica — mas às claras, como algo que tem de ser criticamente avaliado, e não subterraneamente, como algo que está sempre suposto e latente mas que nunca se manifesta.

É claro que qualquer pessoa pode fazer o que quiser — e se quiser escrever textos sobre temas filosóficos com o objectivo de produzir obras literárias, ninguém deve interferir. Mas é preciso compreender que esta ideia não é o projecto original da filosofia; o projecto original da filosofia não era produzir literatura, mas sim explicações que satisfaçam a nossa curiosidade sobre os aspectos mais gerais da nossa estrutura conceptual. Não só é redutor querer encarar a filosofia unicamente como uma forma de literatura, como é algo que renuncia ao projecto original de pessoas como Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Kant ou Frege.

Aliás, é também estranho que as pessoas que em geral encaram a filosofia como uma forma de literatura, gostam depois de interpretar filosoficamente as artes. É estranho que possamos escrever filosofia artisticamente e que possamos interpretar filosoficamente as artes, mas que não possamos interpretar as artes artisticamente nem escrever filosofia filosoficamente. Claro que perante os artistas uma pessoa com formação filosófica consegue impressionar, e perante os filósofos os ademanes “literários” podem ter o seu efeito. Mas o objectivo de um estudioso não deveria ser impressionar, mas contribuir modestamente para o avanço e transmissão do conhecimento.

Os problemas da filosofia

Eis, então, alguns exemplos de problemas da filosofia. A filosofia desenvolveu ao longo da sua vida milenar várias disciplinas distintas. Por vezes, alguns problemas surgem em mais do que uma disciplina. Mas é bom ter uma ideia dos diferentes tipos de problemas estudados por algumas disciplinas da filosofia.

Comecemos pela ética. A ética não estuda os preconceitos comportamentais — preconceitos como a ideia católica de que os homossexuais não podem casar e que ninguém deve ter relações sexuais antes do casamento. A ética nada tem a ver com este tipo de coisas. Este tipo de coisas emana de um certo código religioso de comportamentos, que pouco se relaciona na verdade com a ética — é apenas uma manifestação de uma certa visão religiosa do mundo. Faz-se por vezes uma distinção entre “moral” e “ética” querendo reservar para esta última a acepção filosófica, ao passo que a primeira se referiria aos costumes sociais. Mas esta distinção é artificiosa e caiu em desuso desde há muito tempo.

A ética ocupa-se de vários tipos de problemas bastante distintos. Os mais fáceis de compreender são os da ética aplicada, que se ocupa de problemas como o aborto e a eutanásia. Será o aborto um mal que deve ser proibido? Repare-se que não se trata de saber se o aborto é um mal aos olhos de Deus ou do Papa ou de qualquer confissão religiosa; trata-se de saber se o aborto é, eticamente, e à luz da nossa razão, algo que deve ser proibido, tal como o assassínio é proibido independentemente das religiões. O que ocupa a reflexão filosófica não é apenas a tentativa de dizer “Sim, o aborto é um mal” ou “Não, o aborto não é um mal”. O que distingue a reflexão filosófica é a fundamentação racional: os argumentos que sustentam as nossas posições. O que importa são os argumentos que se apresentam para dizer que sim ao aborto ou para dizer que não. O trabalho da filosofia consiste em estudar esses argumentos e avaliá-los criticamente. A filosofia é algo que cada um faz com a sua própria cabeça, em diálogo crítico com os outros. A filosofia não consiste em ler textos e “comentar” o que esses textos dizem. A filosofia consiste em pensar nos mesmos problemas que são tratados nesses textos, o que é muito, muito diferente.

Mas a ética ocupa-se de outras questões menos óbvias. Por exemplo, o que quer dizer “Matar inocentes é um mal” ou “Não devemos matar inocentes”? O que quer realmente dizer a palavra “dever”? Este tipo de problema é enfrentado pelo que se chama “metaética”. A metaética ocupa-se da questão de saber qual é a natureza do juízo ético. É a área mais geral e conceptual da ética. Há várias teorias que tentam responder a este problema, algumas delas tecnicamente bastante complexas e precisas.

A epistemologia é outra disciplina da filosofia. Neste caso, trata-se de investigar vários problemas relacionados com o nosso conhecimento. Uma vez mais, o carácter conceptual da filosofia obriga a distinguir os problemas filosóficos do conhecimento dos problemas psicológicos ou sociológicos do conhecimento. Por exemplo, a psicologia cognitiva tem vindo a conduzir várias investigações sobre o modo como os seres humanos estruturam vários aspectos do conhecimento. Piaget, por exemplo, procurou estabelecer etapas diferenciadas no desenvolvimento cognitivo dos seres humanos. Os seus estudos estão hoje ultrapassados por investigações mais recentes, mas tanto os seus estudos como os estudos mais recentes não são estudos filosóficos nem têm interesse para a filosofia. Os problemas estudados pela epistemologia ou pela filosofia do conhecimento não se referem de modo algum ao fenómeno do conhecimento tal como ele ocorre realmente nos seres humanos; os problemas da epistemologia e da filosofia do conhecimento são mais gerais e de carácter conceptual.

Um dos problemas da epistemologia mais simples de apresentar é este: o que é o conhecimento? O conhecimento distingue-se da mera opinião porque o conhecimento é factivo — isto é, não podemos conhecer falsidades, apesar de podermos pensar falsidades. Mas o que é realmente o conhecimento? Não ser trata apenas de opinião, porque as opiniões podem ser falsas mas o conhecimento não. Será então que o conhecimento é apenas a opinião verdadeira? Mas será que podemos dizer que os atomistas gregos sabiam realmente que tudo é composto por átomos? Eles tinham realmente essa opinião, e essa opinião veio a verificar-se séculos depois ser verdadeira; mas, de algum modo, parece que eles não sabiam realmente que tudo era composto de átomos — apenas tinham essa opinião que, por acaso, acabou por coincidir com a realidade. O que está em causa neste problema é a definição de conhecimento — algo que não se pode determinar recorrendo a estudos de natureza empírica.

Outro problema importante na área da epistemologia é a questão da justificação do conhecimento — perante um fragmento particular de pretenso conhecimento, como podemos saber que se trata realmente de conhecimento e não de uma ilusão? Por exemplo, todos pensamos que o mundo exterior é independente de nós; mas que razões teremos para pensar isso? E não haverá razões para pensar o contrário?

Reserva-se por vezes o termo “epistemologia” para a filosofia do conhecimento científico, usando-se o termo “gnosiologia” para a filosofia do conhecimento em geral. Mas esta terminologia não é comum hoje em dia, nem corresponde à realidade do que se estuda quando se estuda epistemologia. A epistemologia é o estudo filosófico de vários problemas relacionados com o conhecimento — independentemente de se tratar de conhecimento científico ou de outro qualquer tipo de conhecimento. É a filosofia da ciência que se ocupa de vários problemas relacionados com o conhecimento científico.

Outra disciplina filosófica é a metafísica, que se ocupa de outro tipo de problemas. Que tipo de coisas existem no mundo? Admitindo que existem árvores e mesas e pessoas, será que os números também existem? E as cores? E os conceitos, como a justiça? Quantos tipos de existência há, se há mais do que um? E quais são as categorias mais gerais da realidade? Como poderemos pensar a identidade? Se ao longo de dez anos formos substituindo as tábuas todas de um bote de madeira, o bote de hoje será ainda o mesmo do que o bote de há dez anos? Mas se não é o mesmo, para onde foi o bote de há dez anos e quando deixou ele de existir?

É claro que há muitos, muitos mais problemas da filosofia. Os problemas da filosofia têm esta característica em geral: não se podem resolver recorrendo aos métodos estabelecidos das ciências e implicam um uso forte da argumentação. Os problemas da filosofia interpelam-nos e exigem-nos argumentos. É claro que eu acho que o mundo exterior existe independentemente de mim; mas como posso justificar esta opinião? A filosofia é um pedido sistemático de justificações e essas justificações são argumentos — argumentos de carácter conceptual e não argumentos de carácter empírico.

Argumentos

Mas o que é um argumento? Bom, um argumento é uma forma de tentar justificar uma afirmação. E um argumento é um conjunto de afirmações. Um conjunto de tal modo organizado que com algumas dessas afirmações visamos fundamentar a afirmação que queremos defender. Por exemplo, posso defender que a vida não faz sentido com o seguinte micro-argumento:

A vida não faz sentido. Se fizesse sentido, Deus existiria. Mas Deus não existe.

Este argumento tem uma característica que muito interessa aos filósofos: é válido. O que é um argumento válido? Repare-se: não há qualquer maneira de as premissas deste argumento serem verdadeiras e a sua conclusão falsa. As premissas são “Se a vida fizesse sentido, Deus existiria” e “Deus não existe”. E a conclusão é “A vida não faz sentido”. Não é difícil de ver que é impossível as premissas serem todas verdadeiras e a conclusão falsa. Significa isto que estabelecemos assim tão facilmente a conclusão filosófica de que a vida não faz sentido? Claro que não. Ainda mal começámos o trabalho crítico da filosofia. O nosso trabalho só começa quando nos perguntamos: será este argumento razoável? Bom, já sabemos que é válido — mas isso quer dizer apenas que é impossível as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa. Mas serão as premissas verdadeiras?

Agora começamos a perceber que este argumento, só por si, é um mau argumento. Isto acontece porque as duas premissas são pelo menos tão disputáveis quanto a conclusão. Se não temos mais razões para aceitar as premissas de um argumento do que a sua conclusão, então o argumento é mau, ainda que seja válido. Ora, que razões temos para pensar que Deus não existe? E que razões temos para pensar que se a vida fizesse sentido, Deus existiria? Não será possível que a vida faça sentido apesar de não existir Deus?

Este argumento poderia ser a síntese de um argumento mais vasto, argumento no qual se defendesse cada uma das suas premissas cuidadosamente. Nesse caso, este argumento seria tão bom quanto os argumentos usados para defender cada uma das suas premissas.

E agora já estamos a ver duas características fundamentais da filosofia: o seu carácter eminentemente argumentativo e o facto de a argumentação filosófica raramente conduzir rapidamente a resultados consensuais. Este último aspecto produz por vezes resultados infelizes.

Se começarmos a falar filosoficamente com um amigo sobre Deus e ele acreditar que Deus existe, rapidamente ele começa a ficar desesperado: existem tantos argumentos contra a existência de Deus! E parecem todos tão poderosos! Mas, por outro lado, também existem muitos argumentos a favor de Deus! E parecem igualmente poderosos! Que fazer?

A tentação popular é dizer: “Não se pode saber se Deus existe ou não e a filosofia é inútil porque nunca se consegue decidir nada”. Esta é uma reacção compreensível, mas errada. É claro que nem todas as pessoas têm vocação para a filosofia e portanto nem todas as pessoas apreciam a discussão pormenorizada, sistemática e consequente que constitui a tarefa dos filósofos. Mas daí a dizer que a filosofia nunca conseguirá concluir nada… bom, a reacção filosófica normal, mas talvez irritante, é perguntar: “Mas como sabes que a filosofia nunca vai conseguir concluir nada? Isso parece pelo menos tão difícil de provar como conseguir provar que Deus existe ou que Deus não existe!”

Já Platão tinha alertado para esta dificuldade: as pessoas têm certas opiniões sobre o mundo que as rodeia e a filosofia coloca essas opiniões em causa, o que é desconfortável. É natural que as pessoas resistam, um pouco assustadas, à discussão filosófica — é que esta é um pouco vertiginosa. A discussão filosófica exige um grande apego à verdade — um apego que tem de ser maior do que o apego pelo nosso próprio conforto espiritual, feito de verdades caseiras acriticamente aceites.

Também neste aspecto a filosofia se aproxima bastante da ciência. Pessoas como Newton e Galileu, pessoas como Einstein e Bohr, procuraram continuar a pensar quando todo o pensamento parecia inútil e quando nenhumas garantias de sucesso havia. No tempo de Newton havia várias teorias diferentes para explicar a queda dos corpos e a gravitação dos planetas e qualquer pessoa que começasse a estudar essas teorias contraditórias rapidamente ficaria com a sensação de que jamais seria possível sair daquele labirinto de razões a favor e contra cada uma das teorias. Só a persistência pode produzir resultados — na filosofia como na ciência.

É claro que hoje estamos habituados a pensar na ciência como algo que produz resultados. Mas a ciência esteve estagnada durante séculos. Por outro lado, o tipo de desenvolvimentos que se esperam da filosofia não é o mesmo tipo de desenvolvimentos que esperamos da ciência. Podemos ainda hoje não poder decidir cabalmente que Deus existe, nem que Deus não existe; mas sabemos hoje muito mais do que é necessário acontecer para que Deus exista e do que é necessário acontecer para que Deus não exista. Em qualquer caso, os resultados mais palpáveis da filosofia nunca terão o poder de convencer a multidão como a ciência; a multidão convence-se de que a ciência é uma coisa séria porque há automóveis e micro-ondas; se tivéssemos exactamente o mesmo conhecimento científico que temos hoje mas sem quaisquer aplicações tecnológicas, quem estaria disposto a encarar a ciência com seriedade? Muitas pessoas teriam precisamente a mesma reacção que têm hoje em relação à filosofia: algo que não serve para nada.

Para que serve a filosofia?

A filosofia, diz-se por vezes, não serve para nada. Isto é por vezes apontado à nossa cabeça como se fosse o argumento final contra a filosofia. Por vezes, inquietos com esta questão, faz-se o pior: jogos sofísticos de palavras para mostrar que a resposta “A filosofia não serve para nada” mostra que a filosofia serve para alguma coisa. Isto, claro, é um disparate.

Há três princípios metodológicos que o professor Aires Almeida transmite aos seus alunos, e que são de uma importância crucial: ser claro, ser consequente e ser crítico. Quem apresenta o sofisma acima referido não está a ser consequente. Mas vejamos primeiro qual é o sofisma. Argumentam essas pessoas do seguinte modo: se a filosofia não serve para nada, é porque serve para alguma coisa, visto que duas negativas nos dão uma positiva. Este argumento é sofístico porque é apenas um jogo inconsequente de palavras. Se essas pessoas fossem consequentes, deveriam reagir do seguinte modo quando alguém diz que não está ninguém no cinema: “Ahah! Deve estar lá alguém!” Isto é uma tolice, claro. As línguas como o francês e o português usam duplas negativas no sentido de negativa simples; dizer que não está ninguém no cinema quer dizer que o cinema está vazio; dizer que a filosofia não serve para nada quer dizer que a filosofia para nada serve.

Mas será verdadeiro que a filosofia não serve para nada? Claro que não. A filosofia, como a ciência, como a arte e como a religião, serve para alargar a nossa compreensão do mundo. Em particular, a filosofia oferece-nos uma compreensão da nossa estrutura conceptual mais básica, oferece-nos uma compreensão daqueles instrumentos que estamos habituados a usar para fazer ciência, para fazer religião e para fazer arte, assim como na nossa vida quotidiana. A filosofia é difícil porque se ocupa de problemas tão básicos que poucos instrumentos restam para nos ajudarem no nosso estudo. Os matemáticos fazem maravilhas com os números; mas são incapazes de determinar a natureza última dos próprios números — têm de se limitar a usá-los, apesar de não saberem bem o que são. Todos nós sabemos pensar em termos de deveres, no dia-a-dia; mas a filosofia procura saber qual é a natureza desse pensamento ético que nos acompanha sem nós darmos muitas vezes por isso.

Para compreendermos melhor as dificuldades da filosofia é conveniente pensar numa metáfora. Imagine-se que estou a fazer uma casa. Preciso de usar vários instrumentos, como a pá de pedreiro, e vários materiais, como o cimento. Mas quando quero fazer uma pá de pedreiro, ou quando quero fazer o cimento, terei de usar outros instrumentos mais básicos. E depois terei de ter instrumentos para fazer os instrumentos com que faço a pá de pedreiro ou o cimento. E por aí fora. Experimente ir para uma ilha deserta fazer uma casa, sem levar nada da civilização. Será extremamente difícil: não terá instrumentos à sua disposição para fazer nada, excepto as suas mãos e a sua inteligência.

Num certo sentido, é esta a dificuldade da filosofia: estamos a tentar estudar os próprios instrumentos que usamos habitualmente para pensar. Por esse motivo, falta-nos instrumentos, falta-nos apoio. Mas não estamos completamente desamparados; temos a argumentação para nos ajudar. São os argumentos que fazem a diferença. São os argumentos que nos permitem ir mais longe na compreensão da nossa estrutura cognitiva mais profunda, que nos permitem compreender melhor os conceitos que usamos no pensamento quotidiano, científico, artístico e religioso.

É agora claro que a filosofia serve para alguma coisa. Serve para compreendermos melhor a estrutura conceptual que usamos no dia-a-dia, na ciência, nas artes e na religião. Claro que a filosofia não serve para distrair o “povo”, como o futebol ou a tourada. Mas também a matemática não serve para isso, nem a religião, nem a arte em geral. Para que serve Os Maias de Eça de Queirós? Para que serve a teoria da evolução de Darwin? Para que nos serve saber que só na nossa galáxia há tantas estrelas quantos os segundos que existem em quatro mil anos? Serve para sabermos mais sobre nós próprios e sobre o universo em que habitamos. Tal como a filosofia.

Desidério Murcho
Intelectu, 4 (Setembro de 2000).
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ISSN 1749-8457