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10 de Fevereiro de 2001   Filosofia da ciência

Um acidente cósmico

Thomas Nagel
The Pattern of Evolution
de Niles Eldredge
W.H. Freeman & Company, 1999, 219 pp.

Unweaving the Rainbow
de Richard Dawkins
Penguin, 1999, 352 pp.

Os biólogos contemporâneos que escrevem para o público em geral têm, na maior parte das vezes, mais a comunicar do que informações de carácter científico. Têm lições a dar sobre como devemos pensar sobre nós mesmos e sobre a nossa relação com o Universo. Nada disto é uma novidade, uma vez que a biologia está impregnada da teoria evolucionista de Darwin e que o significado desta teoria para o conhecimento de nós próprios continua largamente por assimilar.

Não se trata somente do facto de a evolução contrariar a história bíblica da Criação — que a Igreja Católica Romana e a maioria dos grupos protestantes já não levam à letra. A teoria de Darwin, como é normalmente entendida, é uma das concepções científicas mais radicalmente redutoras de sempre, pois diz que a aparição de um sentido na concepção intricada das coisas vivas e a sua singular adaptação aos seus ambientes não passam de uma ilusão: toda a criação animal e vegetal é um acidente cósmico, ou antes o resultado de uma muito longa cadeia de acidentes, explicável apenas em termos das leis não intencionais da física de partículas. Que o processo tenha começado alguma vez com a formação de uma molécula auto-reprodutora adequada parece depender de um acidente químico, embora não seja possível presentemente construir um cenário realista que torne provável a sua ocorrência no tempo disponível desde que a Terra começou. E parece fundamentalmente acidental que, tendo começado, o processo tenha seguido um caminho que incluiu o aparecimento de vertebrados, mamíferos e nós próprios. Tudo isto é obscurecido por histórias muito bem engendradas por meio das quais se explica frequentemente a evolução.

Os autores destes dois livros têm uma série de obras conhecidas atrás de si. Têm também uma história de desentendimento, com Dawkins de um lado e Eldredge do outro. Nesta controvérsia, Eldredge está associado a Stephen Jay Gould, seu colaborador de investigação de longa data. O desentendimento e as discussões acaloradas que este provoca são difíceis de entender para quem está de fora, mas parece terem algo a ver com a forma como a teoria evolucionista deve ser apresentada a um público mais vasto. Eldredge e Gould caracterizam Dawkins como alguém que tem uma visão reducionista, ultra-darwinista, intransigente e dogmática, recusando aceitar a complexidade hierárquica do mundo natural, e Dawkins caracteriza Gould, se não Eldredge, como um romântico tapado que amplia dados banais, transformando-os em profundos mistérios.

O problema biológico no centro da discórdia está claramente expresso no livro de Eldredge: que alteração na concepção do processo evolutivo é necessária pelo facto de o registo fóssil não apoiar a convicção de Darwin de que a evolução decorreu gradualmente e a um ritmo mais ou menos constante? O registo fóssil, claro está, é uma manta de retalhos, mas o que parece revelar são espécies que surgiram, permaneceram inalteradas bastante tempo, muitas vezes durante milhões de anos, e depois se extinguiram. Isto não revela longas sequências de alterações graduais nos antepassados de novas espécies, relacionando-os através de uma variação intergeracional diminuta a espécies predecessoras. Nem tão-pouco revela o tipo de evolução gradual cumulativa intra-espécies que resulta, no final, numa diferença suficientemente grande para constituir uma nova espécie.

Em vez disso, o tempo necessário para o aparecimento de uma nova espécie é aparentemente muito pequeno quando comparado com o período durante o qual ela permanece bastante tempo inalterada. Uma espécie que surge num piscar de olhos geológico — digamos, dez mil anos, um tempo demasiado curto para que qualquer fase de transição surja como fóssil — pode permanecer igual durante cinco a dez milhões de anos depois disso. O processo através do qual se forma uma nova espécie é, aparentemente, demasiado rápido para aparecer no registo fóssil, mas demasiado lento para ser observado em experiência humana. Escreve Eldredge: “Até à data, nenhum caso absolutamente convincente, de verdadeira especíação (isto é, envolvendo organismos sexualmente reprodutores) saiu de um laboratório de genética”. Eldredge pensa que estes factos são incompatíveis com uma versão inalterada da teoria de Darwin, uma vez que Darwin acreditava no gradualismo: a ideia de que a evolução prossegue a um ritmo constante, com variações graduais dentro da espécie (do tipo das que são normalmente obtidas pelos criadores de animais) conduzindo a diferenças e ramificações que em determinado ponto se tornam tão grandes que se transformam numa espécie separada. Em certo sentido, diz Eldredge, Darwin não acreditava na realidade das espécies enquanto entidades separadas. O que era real eram os indivíduos — e as diferenças que se desenvolviam gradualmente entre eles. Porém, as espécies não parecem em certo sentido reais: a sua diversidade e uniformidade interna, tanto no tempo como ao longo do tempo, são marcantes. Eldredge e Could introduziram o termo “equilíbrios pontuais” para descrever a sua teoria do processo de evolução não gradual, segundo a qual a pequenos surtos de alterações rápidas se seguem longos períodos de estase.

Ora, isto pode parecer o locus de um profundo desentendimento dentro da teoria evolucionista. O que dá origem a novas espécies repentinamente se não o lento processo de alterações incrementais que Darwin postulou? Quererá isto dizer que estão a trabalhar forças criadoras de um tipo qualquer, gerando formas de vida radicalmente novas, através de um processo interno ao material genético? Isso seria certamente incompatível com o panorama reducionista da teoria tradicional da selecção natural.

No entanto, Eldredge não pensa assim. Está tão empenhado no mecanismo de selecção natural como o está Dawkins. Para explicar a especiação, ele pensa que é necessário incluir factores ambientais e ecológicos: catástrofes naturais que eliminam um largo número de espécies, como os dinossauros, deixando espaço para outras, como os mamíferos, se desenvolverem; movimentos geológicos que separam as subpopulações de uma só espécie e que, por as impedirem de procriar entre si, permitem uma divergência através da selecção ambiental diferencial; e por aí em diante. Por outras palavras, defende, com perfeita sensatez, que a selecção natural tem de ser entendida como algo que funciona em interacção com factos acerca do mundo circundante, e que a estabilidade não é surpreendente quando o ambiente não muda de forma radical, ou quando as populações podem migrar para continuarem num ambiente ao qual estão adaptadas. Mesmo uma alteração temporária, como um incêndio florestal, resultará apenas numa perturbação temporária das formas de vida da população, seguida de um retorno gradual ao equilíbrio ecológico anterior. Será que algum daqueles a quem ele chama “ultradarwinistas” é capaz de negar isto? O livro de Eldredge começa por ridicularizar a pretensão de Dawkins de que será possível a determinada altura explicar a estrutura dos ecossistemas em termos da competição para o sucesso reprodutor entre os genes. Mas seguramente que Dawkins não quer dizer que esta competição tem lugar no vácuo ambiental.

O livro de Dawkins não ataca Eldredge, mas manifesta uma certa irritação para com Gould por este fazer crer que o seu antigradualismo é mais radical do que é na realidade e por encorajar terceiros a pensarem que aqui há mistérios profundos que as concepções tradicionais darwinistas não podem penetrar. Parece pensar que Gould está a vender para aquele público que prefere mistérios a explicações científicas claras. É difícil avaliar esta acusação, especialmente porque Dawkins a apoia sobretudo com citações de outros que têm sido influenciados por Gould.

Porém, a acusação encaixa-se no tema mais vasto do livro de Dawkins, que é o carácter ameaçador que muitos não-cientistas encontram nas explicações científicas redutoras e a consequente resistência ao conhecimento científico entre humanistas e outros leigos. Ele considera imperdoável que um colega cientista brinque com este medo. Pelo contrário, Dawkins quer apresentar ciência verdadeira e irredutível em termos líricos, oferecendo boa ciência poética por oposição à má — e acima de tudo demonstrar que o conhecimento científico pode elevar e expandir a alma. Parece-me que esta tarefa é um pouco embaraçosa, mas posso entender o porquê de ele viver impelido por ela. Como popularizador de Ciência mundialmente famoso e dedicado, Dawkins deve ser objecto de ataques constantes de pessoas que o acusam de frieza, provavelmente devido ao seu título mais famoso, O Gene Egoísta. Mas ele tem um alvo mais importante na pessoa de John Keats, que disse memoravelmente que a análise óptica do arco-íris de Newton destruiu a sua poesia. Em resposta a Keats e outros poetas que desconfiam da Ciência, diz Dawkins: “É minha convicção que o espírito do maravilhoso que conduziu Blake ao misticismo cristão, Keats ao mito da Arcádia e Yeats a fenianos e fadas é o mesmo espírito que move grandes cientistas; um espírito que, se for devolvido aos poetas sob aparência científica, pode ainda inspirar melhor poesia”.

Bem, pode haver um único e imperfeito “espírito do maravilhoso” que se expressa a si próprio no deslumbramento que cada um deve sentir em algum momento da sua vida acerca do imponente facto da existência do Universo e de si mesmo. Mas penso que a procura e o questionar a que esta maravilha conduz — e o tipo de reacção ou resposta que se aproximará mais de a satisfazer — não é igual de pessoa para pessoa e que as diferenças reflectem profundas diferenças de temperamento. Dawkins sabe isto mas tende a ignorar a procura de algo para além da Ciência, como se isso fosse uma preferência por mistérios em vez de respostas. Cita Blake —

Ver um mundo num grão de areia
E um céu numa flor selvagem.
Agarrar o infinito na palma da tua mão.
E a eternidade numa hora

— e diz que ele poderia escrever as mesmas palavras com um sentido muito diferente:

Esta estrofe pode ser lida como se fosse sobre ciência, como se fosse sobre estar sob um foco de luz em movimento, sobre domesticar o espaço e o tempo, sobre o muito grande construído a partir da poeira quântica do muito pequeno, uma flor abandonada como miniatura da evolução... A mística limita-se a deslumbrar-se com a maravilha e a deliciar-se com um mistério que não se espera que entendamos. O cientista sente a mesma maravilha, mas fica inquieto, insatisfeito; reconhece o mistério como profundo, mas acrescenta “Estamos a trabalhar nisso”.

Não é preciso acreditar que há uma incompatibilidade entre a Poesia e a Ciência para encontrar algo de absurdo nisto. O “místico” pode pensar que há algumas questões que devem permanecer sem resposta ou algumas coisas que permanecem por dizer, mesmo depois de todo o conhecimento científico possível ter sido assimilado, embora não precise, tal como Keats, de pensar que a informação científica torna sombrias estas outras respostas. Dawkins passa muito do seu livro a apresentar os prodígios de uma redutora imagem científica do Universo e da sua infinita variedade, desde a luz e o som e o “Big Bang” até às especulações acerca da co-evolução do software e do hardware — talvez linguagem e cérebro —, que conduziram ao desenvolvimento biológico da inteligência humana. É tão fascinante como ele julga, sem ser preciso que insista que isso também é algo “poético”.

Os poetas podem escrever acerca da Ciência, mas a Ciência satisfaz uma sede muito específica de entendimento, a esperança para a ordem universal e a redução de uma variável complexa a simples elementos, de forma a que as relações entre as coisas se tornem intelectualmente transparentes. Isto não é poesia — não é como nenhuma arte — e o seu efeito sobre nós não necessita de formas poéticas de apresentação, embora necessite de um dom para se fazer entender ideias teóricas complexas em linguagem comum, que poucos cientistas possuem mas que Dawkins possui a um nível excepcional.

Eldredge insiste que Dawkins e outros “ultradarwinistas” são demasiado reducionistas, querendo explicar tudo em termos de selecção natural e da competição dos genes pela sobrevivência. Gould publicou recentemente uma longa polémica na New York Review of Books, mas não é fácil perceber que a convergência entre as duas escolas é muito grande ou significativa. Ambas as partes pensam que a influência da selecção natural é enorme mas que opera somente no contexto das circunstâncias ambientais, que fazem algumas características de organismos adaptarem-se e outras não, sendo responsáveis pela extinção das espécies de tempos a tempos. Ambas as partes pensam que algumas características são directamente explicáveis pela selecção natural e outras meros efeitos secundários. Também reconhecem ambos que a física e a química restringem e moldam as possibilidades biológicas e o alcance das variações genéticas possíveis. Então porquê tanta má disposição?

Penso que se trata de um conflito sobre a pureza. No presente estado de conhecimento, a teoria da evolução pela mutação genética e selecção natural através do sucesso reprodutivo diferencial dos indivíduos é um esquema explicativo. Descreve a forma bruta de uma história interminável de nascimentos, reproduções e mortes sem especificar os pormenores químicos grandemente complexos dos quais está dependente, a maior parte dos quais nunca será recuperada. A História actual inclui minúcias incontáveis, alterações químicas não letais no ADN das células reprodutoras, resultando cada uma delas, através do desenvolvimento embrionário, em organismos alternativos viáveis ligeiramente diferentes dos seus progenitores.

Este esquema levanta inevitavelmente a questão sobre se se pode contar a História na íntegra de baixo para cima — sendo tudo explicado em termos de física de partículas — ou se alguns princípios de organização de uma ordem superior fazem parte do quadro, aumentando a probabilidade da História. Suspeito que isto é o que Dawkins julga que Gould e Eldredge estão a acalentar perante um público sedento de sentido ou um sucedâneo disso no mundo natural. Eles, por seu turno, pensam que Dawkins é demasiado célere a assegurar ao público que uma explicação reducionista está ao seu alcance quando fenómenos como a explosão no número de espécies, há cerca de 540 milhões de anos atrás parecem desafiar tal explicação.

O fantasma da geração espontânea assombra este tema. Há mais de um século, Pasteur refutou através da experimentação a hipótese da geração espontânea de bactérias, mas a complexidade da vida é tão extraordinária que a ideia de princípios materiais de auto-organização de uma ordem superior continua a fazer aparições veladas, como uma alternativa à confiança reducionista, que presentemente depende em grande parte do facto de se fazer notar. Até todo o processo, desde a origem da vida, passando pelos passos evolutivos que conduziram ao desenvolvimento de organismos multicelulares complexos, ser reduzido aos primeiros princípios químicos de forma consistente com as probabilidades matemáticas, sem princípios de ordem ou de auto-organização arbitrários ou inexplicáveis, a imagem fortemente reducionista do mundo continuará a ser especulativa. Isto é o que suspeito estar na origem das hostilidades na biologia evolucionista — a questão de saber quem, se é que há alguém, está a vender, e de quem, se é que há alguém, está a reivindicar demasiado.

Um belo livro de John Maynard Smith, Shaping Life: Genes, Embryos and Evolution (1998), que faz parte de uma colecção intitulada Darwnism Today, explica o actual estado do projecto reducionista no contexto do surpreendente desenvolvimento do ovo fertilizado ao organismo adulto, e observa que, curiosamente, parece haver uma correlação entre o holismo (por oposição ao reducionismo) e simpatias políticas de esquerda. Diz ele que em economia a correlação está invertida, porque a teoria da mão invisível de Adam Smith, que está subjacente à ideologia do mercado, é holística. Eu diria exactamente o contrário: a análise da ordem social como a interacção de inúmeros indivíduos que pensam nos interesses próprios cai do lado reducionista. Os termos são um pouco escorregadios, mas talvez isto demonstre que algumas formas de auto-organização são afinal compatíveis com o reducionismo.

Há muito mais em Dawkins e Eldredge do que descrevi. Eldredge apresenta uma história fascinante da interacção entre a geologia e a paleontologia, incluindo a história da descoberta das placas tectónicas e da deslocação dos continentes. Lembro-me de pensar, em criança, que o paralelo entre a costa leste das Américas e a costa ocidental da Europa e da África não podia ser coincidência e que se deviam ter afastado. Surpreendentemente, só anos mais tarde é que isto foi cientificamente compreensível, e a história da recusa em aceitar isso, como esta foi ultrapassada e a sua relação com a interpretação do registo fóssil são fascinantes. Dawkins discute impressões digitais de ADN, a natureza não-intuitiva da probabilidade e várias formas de disparate não-científico, como a astrologia, que enganam muitas pessoas crédulas. Há demasiado sobre a sociologia e a psicologia das atitudes dos não-cientistas face à Ciência, em detrimento da Ciência em si mesma. Mas ambos os livros são gratificantes para o amador insaciável.

Thomas Nagel
Original publicado em The London Review of Books.
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ISSN 1749-8457