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Crítica
10 de Fevereiro de 2001   Filosofia da linguagem

Pretensões exaltadas

Thomas Nagel
Tradução de Carla Hilário de Almeida
Words and Rules
de Steven Pinker
Weidenfeld & Nicolson General, 1999, 359 pp.

O que torna a linguagem um objecto de estudo tão feliz é o facto de existir em todos nós e cada um poder usá-la como uma fonte de dados para confirmar, ou refutar, teorias gerais sobre ela. Nesta excelente obra de divulgação científica, Steven Pinker apresenta-nos a psicolinguística contemporânea, tomando como tópico principal o passado na língua inglesa e a distinção entre verbos regulares e irregulares.

“He lied as he lay down beside her” (“Ele mentiu quando se deitou ao lado dela”) é o passado de “he lies as he lies down beside her” (“ele mente quando se deita ao lado dela”). Os verbos irregulares, salvo os extremamente irregulares “ser” e “ir”, tendem a formar conjuntos específicos. “Shrink, shrank, (have) shrunk” joga com “drink, sink, stink”; “sleep, slept, slept” com “keep, creep, weep”. Temos “blow, blew, blown”; “find, found, found”; “wear, wore, worn”; “hit, hit, hit”; etc. Mas temos de os recordar individualmente. Os verbos regulares seguem a regra “acrescentar -ed”, resultando em três pronúncias diferentes como em “lived, licked” e “listed”, também limitadas por regras estritas de fonologia. A regra -ed aplica-se automaticamente, quando não é bloqueada por uma alternativa mais complicada, e por isso funciona para a maior parte dos verbos, incluindo as novas aquisições como “borked” e “faxed”.

Os verbos irregulares são os de maior frequência na língua o que explica o motivo por que os recordamos. Quando uma forma irregular é pouco utilizada, tem tendência a ser substituída pela regular, como “crew” que deu lugar a “crowed”. O equilíbrio entre os dois mecanismos — a memorização e a aplicação da regra — é ilustrada pela chamada curva de aprendizagem em forma de U seguida pelas crianças. No princípio, adquirem as formas verbais individualmente através da memória, tantos as regulares como as irregulares. Depois, à medida que dominam a regra dos verbos regulares, no terceiro ano tendem a aplicá-la demasiadas vezes, fazendo erros como “goed” e “sended”, que não faziam anteriormente. Só alguns anos mais tarde estes erros serão ultrapassados pela força das formas irregulares na memória. Tal como Pinker afirma: “aqueles que não conseguem lembrar-se do passado estão condenados a computá-lo”.

Pinker também discute a questão dos plurais e temas relacionados (como a questão de saber por que razão dizemos “still lifes” em vez de “still lives”). E diz-nos muito sobre como a história da linguagem justifica muita das suas propriedades, incluindo a decadência de muitos verbos irregulares de regras anteriores, agora inexistentes. Para alguém como eu que fica em estado de choque quando se depara com “criteria” ou “data” tratados como substantivos singulares, ou quando se vê perante “kudos” como o plural de “kudo”, este livro é bastante suave. Pinker não é imune a este tipo de sentimentos e diz que mal se consegue conter quando ouve um orador a referir-se incessantemente aos “alumnis” da sua Universidade — mas vai por outro lado. Cita Jonathan Swift quando se insurgia contra os bárbaros, que na sua época não tratavam o sufixo -ed como uma sílaba separada em palavras como “disturbed” e “rebuked”. O facto de a linguagem unir uma normativa feroz a uma contingência radical deve encorajar um certo relativismo e mesmo tolerância em todos nós, mesmo que continuemos a defender a nossa dama. Neste caso, bem como em muitos aspectos, a civilização está em declínio absoluto, mas ao mesmo tempo a renascer continuamente.

O problema do livro de Pinker é levar-se demasiado a sério. Grande parte do texto anda à volta da controvérsia entre psicólogos da linguagem, que o leitor achará aborrecida — entre a opinião radical em defesa da aprendizagem da gramática por associação e a opinião, favorecida por Pinker, de que a identificação de regras formais com consequências ao nível da dedução desempenha um papel muito importante no processo. Os defensores da aprendizagem por associação tentam explicar tudo em termos de semelhanças fonéticas ou mesmo semânticas e diferenças entre palavras. Não tenho razões para pensar que Pinker não tenha apresentado a oposição no seu melhor, mas parece-me uma posição sem qualquer interesse; Pinker gasta mais munições do que o necessário para nos convencer que os verbos regulares constituem um bom contra-argumento. A ideia da associação é velha e má, no que respeita ao modo como a mente funciona em geral, mas foi recentemente reabilitada pelo modelo “da ligação” de David Rumelhart e James McClelland, juntamente com simulações de computador, que Pinker passa páginas intermináveis a refutar. Dá-nos a desculpa encantadora, mas incipiente de que “como psicólogo é treinado para não acreditar em nada que não possa ser demonstrado no laboratório, em ratos ou estudantes universitários”.

Requer apenas alguma reflexão compreender que, apesar de a mente funcionar em parte por percepções de semelhança e diferença, isto não pode justificar a sua capacidade de aplicar conceitos precisos que classificam casos completamente diferentes e deles tirar conclusões que a mera semelhança nunca revelaria. Os conceitos matemáticos e geométricos são exemplos bastante claros, mas muitas formas de operações mentais nos seres humanos dependem de uma estrutura lógica de dedução. O aspecto básico dos mecanismos de associação mais primitivos foi uma das coisas que tornou a teoria behaviorista de B. F. Skinner tão limitada como um meio de compreensão dos seres humanos, especialmente no que se refere ao uso da linguagem.

Pinker parece estabelecer que o passado regular na língua inglesa, além de outras regras gramaticais, não são aprendidas apenas pela associação, mas também pela identificação de uma estrutura lógica. No entanto, exagera muito no significado da sua disputa, relacionando-a com o conflito respeitável entre o racionalismo e o empirismo: Descartes e Leibniz contra Locke e Hume. É verdade que as hipóteses psicológicas foram parte do que dividiu aquelas figuras do passado, mas a sua diferença crucial era epistemológica: em que podemos basear as nossas pretensões de conhecimento do mundo, se é que podemos baseá-lo em algo? Será que, tal como parece no caso da ciência moderna, essas pretensões vão além das nossas experiências, apesar de estarem apoiadas nelas? Que contribuição adicional de uma razão ou entendimento a priori é necessário ter, para além da experiência? E estará tal coisa disponível?

A disputa entre a importância relativa da detecção de regras e a memorização das regras da gramática não tem nada a ver com esta questão, porque não tem nada a ver com a epistemologia, ou seja, com a questão de saber como as nossas crenças sobre o mundo se podem justificar. A verdade acerca da linguagem depende do modo como as pessoas falam, mas a verdade sobre o mundo natural não depende daquilo em que as pessoas acreditam. Assim, há um problema com os nossos métodos de formação de crenças, que não existe em relação aos nossos métodos de aprendizagem da linguagem: o problema não reside apenas no facto de esses métodos não serem associativos ou lógicos, mas na questão de saber se nos conduzem à verdade.

A natureza da contribuição inata ao processo pelo qual as perícias linguísticas são adquiridas é de grande interesse psicológico, mas não tem mais importância para os nossos conhecimentos de física ou bioquímica do que os instintos do pássaro do nosso vizinho. O impulso de apresentar descobertas empíricas na psicologia como soluções para problemas filosóficos básicos pode ser um dos ossos do ofício da área, mas não é mais desculpável do que a necessidade que os biólogos sentem de explicar a origem da moral.

Aprender um sistema gramatical parece depender de uma capacidade especial, mais do que a aplicação de uma capacidade de aprendizagem mais geral ou lógica, no caso especial da língua. A prova disto está não somente na velocidade com que crianças muito pequenas cumprem a tarefa automaticamente, sem qualquer formulação consciente das regras complexas que aprendem a obedecer. E também na independência desta capacidade de outras, através de um défice genético. Existe um defeito genético raro chamado Síndrome de Williams, cujas vítimas vivem, em muitos aspectos, com a idade mental de seis ou sete anos, mas cujo discurso é extremamente fluente, sofisticado a nível gramatical e rico em vocabulário. E existe um defeito genético diferente que resulta numa grande dificuldade em aprender a falar, utilizando a gramática, mas sem efeitos noutros aspectos da inteligência. Estas pessoas têm de memorizar as formas verbais uma por uma. Estes dados são a prova irrefutável da complexidade e especificidade da linguagem, das diferentes formas de afasias causadas por danos em diferentes zonas do cérebro.

Todo o trabalho nesta área tem origem ou resposta na grande contribuição de Noam Chomsky, que formulou a questão básica do tamanho e da especificidade da contribuição inata da aprendizagem da língua, há mais de quarenta anos. Uma vez que qualquer criança normal educada num ambiente adequado pode aprender qualquer língua com o mesmo à vontade, esta contribuição inata, seja ela qual for, deve ser universal. Chomsky propôs a existência de características universais profundas comuns a todas as línguas, características essas que estão correlacionadas com esta faculdade, fazendo qualquer criança descobrir a solução quando confrontada com um exemplo.

Pinker tenta identificar uma linguagem universal no fim do seu livro, mas é apenas o fenómeno de uma “regra por defeito”, que rege todos os casos que não são regidos por formações mais específicas memorizadas individualmente. O passado regular é uma destas regras em inglês. Na língua chinesa, que não é inflexiva, Pinker identifica uma regra por defeito que proporciona uma espécie de palavra-padrão, de modo a acompanharem substantivos que não têm um radical específico, e que tem de ser memorizada. Em inglês, dizemos “a piece of fruit” (“uma peça de fruta”) e “piece” (“peça”) é um radical, mas não precisamos de um para cada substantivo. Em chinês, pelo contrário, o radical é obrigatório e por defeito é, afirma Pinker, ge. Está bem, mas é difícil ver isto como o tipo de semelhança profunda entre as línguas que poderia ajudar a explicar por que razão as crianças podem aprender ambas com a mesma facilidade.

Steven Pinker é um explicador brilhante, um grande coleccionador de exemplos divertidos, além de astuto. Devia reconhecer que este tema é suficientemente interessante por si e que não precisa de ser reforçado com pretensões exaltadas de significado mais profundo.

Thomas Nagel
Publicado originalmente em New Republic e posteriormente no jornal O Independente.
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