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Crítica
21 de Setembro de 2003   Lógica

Limites do papel da lógica na filosofia

Desidério Murcho

Aristóteles considerava a lógica um instrumento filosófico imprescindível e a tradição escolástica cultivou a argumentação estritamente silogística. No entanto, a cultura filosófica está hoje dividida quanto ao papel da lógica na filosofia. Ao inaugurar a filosofia da época moderna, Descartes introduziu também um profundo desprezo pela lógica silogística, a única então conhecida, enquanto instrumento filosófico. É irónico que os filósofos mais argumentativos da época moderna, como Descartes e David Hume, tenham desprezado o papel da lógica na filosofia. Esta atitude ficou sem dúvida a dever-se às insuficiências da própria lógica silogística e talvez também ao juízo nem sempre justo daqueles que, ao procurar inovar numa dada área do conhecimento, sentem o legado deixado pela tradição como um obstáculo incómodo aos seus novos propósitos e métodos. É neste contexto que temos de entender a afirmação de Kant de que a lógica era, já no seu tempo, uma disciplina acabada e perfeita (Cf. Crítica da Razão Pura, BVIII). Um século mais tarde, Frege e Russell iriam provar que Kant estava profundamente enganado: muito havia ainda a fazer no estudo da lógica.

O advento da lógica moderna de Frege e Russell cristalizou duas atitudes antagónicas quanto ao papel da lógica na filosofia. Por um lado, há filósofos que ignoram a lógica (seja ela moderna ou silogística), à semelhança dos seus antecessores do Renascimento. Por outro lado, filósofos houve, como Carnap, que viram na lógica moderna o instrumento que em última análise permitiria a solução dos problemas filosóficos. Hoje em dia já ninguém partilha com Carnap esta crença errada nos poderes da sintaxe da lógica dedutiva. No entanto, continua a fazer-se sentir uma divisão quanto ao papel da lógica na filosofia. De um lado, continuam aqueles que negam à lógica qualquer pertinência para a filosofia e, do outro, aqueles que, apesar de não acreditarem que a lógica possa resolver os problemas da filosofia, lhe reservam todavia um papel importante. É a esse papel, e aos seus limites, que resolvi dedicar estas páginas, sem pressupor por parte do leitor qualquer conhecimento de lógica.

A natureza da lógica

O conhecimento humano tem duas fontes: a experiência e a razão. Na linguagem filosófica é costume dizer-se que uma proposição é a priori se a sua verdade pode ser conhecida sem apelar para a experiência; e a posteriori se pelo contrário só podemos conhecer a sua verdade através da experiência.

Um raciocínio é o processo pelo qual se chega a uma conclusão, partindo de uma sequência de proposições, a que se chamam premissas. As premissas e a conclusão podem ser a priori ou a posteriori.

É necessário distinguir o conceito lógico de raciocínio do conceito psicológico de raciocínio. O conceito psicológico de raciocínio denota aquela actividade mental que os seres humanos realizam desta ou daquela maneira, melhor ou pior, com prazer ou não. O conceito lógico de raciocínio é uma abstracção independente de factores psicológicos. A lógica não estuda o fenómeno psicológico do raciocínio; isso é estudado por parte da psicologia. A lógica não é uma disciplina empírica acerca da maneira como as pessoas raciocinam de facto. A lógica é uma disciplina a priori que, entre outras coisas, estabelece as normas que as pessoas têm de cumprir se desejam realmente alcançar o raciocínio correcto ou válido. Se a lógica fosse uma disciplina empírica acerca da maneira como as pessoas pensam de facto, teria de admitir como correctos ou válidos aqueles raciocínios que a maioria das pessoas realizam supondo serem correctos ou válidos. Mas a verdade é que os raciocínios incorrectos ou logicamente inválidos não se tornam válidos mesmo que todas as pessoas os tomem como válidos.

É necessário agora distinguir claramente a validade, ou a correcção de um raciocínio, da verdade. A validade é uma propriedade dos raciocínios e não das proposições que os compõem, ao passo que a verdade é uma propriedade das proposições que compõem os raciocínios. Isto é, uma proposição pode ser verdadeira ou falsa; mas não faz sentido dizer que é válida ou inválida. Pelo contrário, um raciocínio é válido ou inválido mas não faz sentido dizer que é verdadeiro ou falso. Esta não é uma mera convenção, nem uma distinção meramente verbal; ela corresponde à diferença que existe entre a avaliação de um raciocínio e a avaliação de uma proposição. Avaliar uma proposição é muito diferente de avaliar um raciocínio. Quando avaliamos um raciocínio e sancionamos a sua qualidade, afirmamos que ele nos “conduz” à verdade, assumindo que as premissas são verdadeiras. Esta verdade a que ele nos “conduz” é a proposição que se conclui. Assim, avaliar positivamente um raciocínio é afirmar que, assumindo a verdade das suas premissas, ele nos garante a verdade da conclusão. Logo, temos de distinguir essa qualidade que os bons raciocínios têm, que consiste em garantir a verdade das suas conclusões, da própria verdade das suas conclusões: é preciso distinguir o comboio que nos conduz ao Porto, do Porto.

A melhor forma de explicar a diferença entre verdade e validade é através de um exemplo. Tome-se o seguinte raciocínio:

Sócrates e Platão eram egípcios.
Logo, Sócrates era egípcio.

Este raciocínio é claramente válido. Mas é a sua premissa verdadeira? Pode ser verdadeira ou falsa; a lógica nada nos diz sobre isso. E a sua conclusão é verdadeira ou falsa? A lógica também não diz. O que a lógica afirma é que se a premissa for verdadeira, então a conclusão também é verdadeira: é por isso que é um raciocínio dedutivo válido. É aliás isso mesmo que é um raciocínio dedutivo válido. Um raciocínio dedutivo válido é aquele em que se as premissas forem verdadeiras, a conclusão também será verdadeira. Claro está que se as premissas forem falsas a conclusão pode ser falsa, ainda que o raciocínio seja válido.

A lógica estuda as leis da inferência dedutiva. A lógica estuda as leis que permitem que de premissas verdadeiras se derivem conclusões verdadeiras. A lógica não pode pronunciar-se sobre a verdade das premissas de um raciocínio; afirma apenas que a conclusão de um raciocínio é verdadeira se, e só se,

1) o raciocínio for válido; e
2) as premissas forem todas verdadeiras.

Está claro que existem outros tipos muito comuns de raciocínio: a indução e analogia. Mas nestes casos as conclusões não se seguem logicamente das premissas. Um raciocínio indutivo razoável é ainda um raciocínio dedutivamente inválido.

Note-se que as premissas de um raciocínio dedutivo tanto podem ser a priori como a posteriori. Porém, as teorias e os argumentos tipicamente filosóficos não só são dedutivos, como muitas vezes as premissas desses argumentos são a priori, no sentido em que não são confirmáveis ou refutáveis pela experiência. Teorias e argumentos indutivos e com premissas a posteriori são típicos das disciplinas empíricas como a história ou a física.

Verdade e ilusão

Se um raciocínio for válido ou correcto e se as suas premissas forem verdadeiras, a sua conclusão também será verdadeira. Está claro que podemos obter conclusões verdadeiras a partir de premissas falsas com raciocínios inválidos; por exemplo:

Nenhum pássaro é preto.
Logo, algumas coisas pretas são pássaros.

Também podemos obter conclusões verdadeiras a partir de premissas falsas com raciocínios válidos; por exemplo:

Sócrates era francês e Platão era grego.
Logo, Sócrates era francês ou Platão era grego.

Estes dois exemplos mostram como se pode chegar a conclusões verdadeiras — o principal interesse dos filósofos — partindo quer de premissas falsas, quer de raciocínios inválidos. Chegámos por isso ao ponto em que os mais saudavelmente cépticos perguntarão que papel poderá a lógica ter na filosofia, considerando que podemos ter as seguintes situações:

1) raciocínios inválidos com premissas falsas e conclusões falsas;
2) raciocínios inválidos com premissas verdadeiras e conclusões verdadeiras;
3) raciocínios inválidos com premissas verdadeiras e conclusões falsas;
4) raciocínios inválidos com premissas falsas e conclusões verdadeiras;

e ainda:

5) raciocínios válidos com premissas falsas e conclusões falsas;
6) raciocínios válidos com premissas falsas e conclusões verdadeiras;

e que, para além de distinguir claramente os argumentos válidos dos inválidos, a lógica só nos garante que

7) em raciocínios válidos com premissas verdadeiras as conclusões são também verdadeiras.

Para responder a esta pergunta tenho de voltar a lembrar o facto de que todo o conhecimento humano é fruto ou da experiência ou do raciocínio. Se optarmos por uma postura intelectual honesta não podemos deixar de nos perguntar como poderemos nós distinguir o conhecimento verdadeiro da mera ilusão. Que critério podemos nós usar que nos permita distinguir a verdade da ilusão? A resposta depende do domínio de conhecimento a que nos referimos. Se estamos no domínio do conhecimento empírico temos a experiência como guia: ninguém acredita numa proposição que afirma que todos os pássaros são pretos quando o nosso canário é amarelo, ainda que esta seja defendida por uma qualquer grande autoridade, com um léxico terrorista e uma gramática barroca.

Mas como poderemos nós distinguir a verdade da ilusão, do erro e da falsidade quando as proposições que proferimos estão completamente fora do alcance da experiência? Se alguém nos afirma que os humanos são essencialmente racionais mas acidentalmente bípedes, como reagir a esta afirmação? É certamente muito diferente daquela outra que afirmava que todos os pássaros são pretos. Nesse caso tínhamos a experiência para confirmar ou refutar tal ideia. Mas agora não temos tal coisa. E se estamos num domínio cognitivo não podemos considerar como argumento o facto de essa pessoa afirmar ter tido uma experiência mística em que essa verdade lhe foi revelada. Talvez ela pense que teve essa experiência; mas como vamos nós conseguir distinguir a experiência verdadeira que ela pensa que teve, da ilusão de que a teve? Num contexto cognitivo é irrelevante apelar para experiências pessoais que não podem ser repetidas por terceiros e que nem eles próprios podem distinguir da mais banal das ilusões — ainda que isso seja reconfortante de um ponto de vista afectivo e pessoal (para aquelas pessoas que são pouco exigentes quanto ao valor de verdade daquilo em que querem acreditar). Mas a ciência, a filosofia e a arte não são pessoais mas sim públicas, discutíveis, passíveis de controlo por terceiros. Não se aceita uma lei da física que só se verifica no laboratório de um cientista quando ele está sozinho; não se aceita uma proposição da filosofia para a qual não há argumentos discutíveis mas que o filósofo afirma sentir ser verdadeira; não se aceita o valor de um quadro que ninguém consegue jamais apreciar excepto aquele mesmo que o pintou.

Lógica, argumentos, filosofia

A tarefa da filosofia, tal como a tarefa das ciências, é descobrir proposições verdadeiras. Mas ao contrário do que acontece com as ciências empíricas, a experiência raramente fornece à filosofia um critério para distinguir a verdade da falsidade. Assim, apesar de a lógica parecer fornecer tão pouco, é afinal o único meio seguro que temos para excluir argumentos que, ainda que conduzam à verdade, o fazem de forma tal que não podemos realmente saber se estamos perante a verdade ou perante a ilusão. A lógica não pode decidir se as premissas são ou não verdadeiras; a lógica não pode tão-pouco decidir se a conclusão de um raciocínio é verdadeira ou não; mas a lógica diz-nos se tal conclusão resulta realmente ou não de tais premissas.

É a lógica que permite distinguir claramente os argumentos válidos das falácias. Uma falácia é um argumento inválido que no entanto parece ser válido. Quando o nosso campo de investigação excede claramente a experiência, só a lógica permite evitar as falácias. Repare-se no seguinte argumento:

Tem de existir algo que seja a causa de todas as coisas porque todas as coisas têm uma causa.

A generalidade das pessoas que desconhece lógica aceita este argumento. No entanto ele é falacioso, como sabem aqueles que conhecem os rudimentos mínimos de lógica para a investigação filosófica. Repare-se que se alguém nos afirmar que tem de existir alguém que seja a mãe de todas as pessoas porque todas as pessoas têm uma mãe, já se vê claramente que o argumento não é válido. Isto acontece porque a conclusão pode ser verificada empiricamente: não existe uma pessoa que seja a mãe de todas as pessoas. Mas este argumento é logicamente idêntico ao argumento anterior; a forma lógica de ambos os raciocínios é a mesma. Num caso temos proposições empiricamente verificáveis; no outro não — mas temos a lógica que permite excluir imediatamente também o primeiro argumento como inválido.

Repare-se num argumento típico da filosofia: o filósofo quer defender a ideia de que o bem é o que dá prazer. Nós perguntamos: por que diz você tal coisa? E ele responde: porque isto, e porque aquilo, e porque aqueloutro; logo, o bem é o que dá prazer. A lógica permite-nos dizer: não senhor, dessas premissas é que não se pode derivar tal conclusão; esse raciocínio não é válido. Até pode ser que o bem seja o que dá prazer; mas a proposição que afirma que o bem é o que dá prazer não se pode derivar das premissas apresentadas. Como não podemos ter dados empíricos acerca de tal questão, vamos ter de arranjar outras quaisquer premissas donde se possa derivar que o bem é o que dá prazer. Há dois mil anos que os filósofos cristãos procuram um argumento dedutivo para provar a existência do seu deus; mas até hoje ninguém conseguiu. O que é também típico da filosofia: é que a lógica diz-nos se um argumento é ou não válido; mas mesmo que um argumento não seja válido pode ser que a sua conclusão seja verdadeira. Mas quem a propõe tem de convencer a inteligência dos outros filósofos; e o único recurso é arranjar um outro argumento que seja válido.

Claro está que ainda que um filósofo conceba um argumento válido para demonstrar que Deus existe, não se segue que Deus existe de facto; segue-se apenas que se as premissas desse argumento forem verdadeiras, Deus existe. Os filósofos passam agora a discutir a verdade de uma ou outra premissa em particular; e para argumentar a favor dessa premissa em particular vamos ter outra vez o dilema: ou temos o critério da experiência para confirmá-la ou temos de argumentar. Mas se temos de argumentar (o que é tipicamente o caso da filosofia), temos outra vez todo o processo a repetir-se. É isto que torna a filosofia muito difícil.

O que torna a filosofia sublime é o carácter extraordinário que a faz perguntar pelo que a experiência não pode alcançar, sem desistir de exigir que se distinga a verdade da ilusão. Estas perguntas podem ser incómodas para as pessoas que têm um forte espírito técnico e um fraco espírito interrogativo, ou para as pessoas que querem ter a todo o custo conforto espiritual, sem se preocuparem muito em saber se aquilo que os conforta é ou não realmente verdade. Mas a filosofia é fundamentalmente uma actividade de fazer perguntas incómodas e tentar encontrar respostas razoáveis. Perguntas muito simples sobre as questões mais gerais da realidade. Tão gerais que não podem ter uma resposta empírica. A questão de saber o que é a consciência pode ser, num certo sentido, respondida pelas ciências empíricas. Mas quando a neurofisiologia, a psicologia e as ciências da cognição nos disserem o que é a consciência, o problema filosófico sobre a natureza da consciência continuará a existir. O filósofo dirá: “Sabemos agora o que é a consciência e como funciona. Mas as coisas poderiam ou não ter sido de outra maneira? Qualquer ser que possua consciência tem de ter uma consciência como a nossa?” A questão filosófica sobre a consciência fica sem dúvida enriquecida com a investigação científica; mas não se confunde com ela. (Alguns filósofos analíticos poderão achar este meu aparente antinaturalismo chocante. Mas concordarão sem dúvida que o que caracteriza a filosofia é um certo tipo de investigação conceptual; a questão de saber que conexão tem essa investigação com as ciências empíricas é posterior ao carácter conceptual da investigação filosófica. Aliás, o que há de mais evidente nos filósofos naturalistas, como Quine, é o facto de terem de defender a priori as suas doutrinas naturalistas: nenhuma informação empírica pode ajudá-los a sustentar essa tese, que por isso é tipicamente filosófica. O naturalismo não é uma tese naturalista.)

As teorias filosóficas típicas não podem ser confirmadas ou infirmadas pela experiência; ultrapassam-na. Só a lógica e a discussão séria podem ajudar-nos a avaliar a verdade das suas teorias, uma vez que queremos excluir do nosso estudo o apelo irracional a experiências místicas. Mas como vimos, um argumento válido nunca é conclusivo em filosofia porque é sempre possível duvidar da verdade das premissas; por outro lado, um argumento inválido pode ainda assim ter uma conclusão verdadeira. Assim, a lógica não pode de forma alguma resolver os problemas da filosofia; não pode pelo menos, seguramente, resolvê-los todos. Mas é um instrumento básico sem o qual a tarefa do filósofo é bastante mais confusa, correndo o risco de se tornar ou num discurso autofágico, ou num veículo de divulgação disfarçada de ideias pouco inteligentes que querem furtar-se à livre discussão. O verdadeiro filósofo é aquele que procura satisfazer a sua curiosidade intelectual pela verdade, nada sacrificando ao valor da verdade; por mais que uma ideia seja pessoalmente reconfortante para um intelectual, o seu compromisso é com a verdade, não com o conforto; o seu compromisso é com a inteligência, não com a crença injustificada. Quem poderá pretender que a garantia da verdade de uma tese é o facto de o autor sentir que ela é verdadeira? Não se trata de deitar o sentimento humano fora, transformando assim as pessoas em máquinas destituídas de sentimentos. Trata-se muito simplesmente de ser imperioso distinguir a verdade da ilusão. Por mais que um pintor que não tem qualquer domínio de qualquer técnica de pintura sinta que o mau quadro que pintou é bom, temos de poder distinguir esse sentimento que ele tem acerca do valor do seu quadro da verdade acerca do valor do seu quadro.

Lógica, consistência, clarificação

Para apresentar o segundo papel da lógica na filosofia tenho agora de introduzir brevemente a noção de inconsistência. Duas proposições são inconsistentes se, e só se, não podem ser ambas verdadeiras. Por exemplo, a proposição

A vida tem sentido.

é inconsistente com a proposição

A vida não tem sentido.

A dificuldade da filosofia faz com que muitas das teorias que merecem ser consideradas seriamente não se deixem no entanto apresentar como conclusões de argumentos dedutivos. Isto é, existem muitas teorias filosóficas, possivelmente a maioria, que não são suportadas por argumentos a partir dos quais essas teorias seriam deduzidas. Como avaliar criticamente teorias filosóficas que não são suportadas por argumentos dedutivos? É aqui que a lógica encontra o seu segundo papel fundamental na filosofia. A tese filosófica proposta pode não ser consequência lógica de nenhumas premissas mas também não poderá ser inconsistente com verdades mais básicas amplamente aceites, sob pena de ter de ser afastada logo à partida da discussão.

Uma tese que afirme serem todas as verdades do universo dedutíveis a partir de um conjunto finito de verdades lógicas é inconsistente com resultados fundamentais da própria lógica. (Gödel demonstrou em 1931 que de nenhum sistema axiomático se podem derivar todas as verdades da aritmética; logo, não é possível derivar todas as verdades num sistema axiomático. Pelo menos as verdades da aritmética terão de ficar por derivar. Mas com certeza que as verdades do mundo em geral terão de ficar também por derivar, pois estas incluem as verdades da aritmética.) Não pode por isso ser verdadeira. Mas ainda não se provou até hoje que a tese que afirma a existência de Deus é inconsistente com quaisquer verdades conhecidas; segue-se, então, que esta tese é verdadeira? Não; segue-se apenas que pode ser verdadeira, tanto quanto sabemos. Mais uma vez deparamos com o facto de a lógica carecer de poder para determinar a verdade das teorias filosóficas. Mas mais uma vez também percebemos o papel reservado à lógica: permitir que se separe claramente aquelas teorias que merecem ser consideradas daquelas outras que por pura análise lógica têm de ser logo à partida afastadas da discussão séria.

Se entendermos que a filosofia consiste na discussão de teorias e argumentos com o objectivo último de ganhar conhecimento, não podemos deixar de enfrentar o problema de saber como podemos nós avaliar as diferentes teorias e argumentos em discussão. É o que se chama avaliação crítica. A avaliação crítica em filosofia não pode ser confundida com arrumação histórica filosoficamente acrítica por carecer de instrumentos adequados. Temos de saber distinguir claramente a discussão histórica acerca do que disse de facto determinado filósofo e das diversas circunstâncias culturais, sociais e psicológicas que eventualmente o levaram a afirmar tal, da discussão filosófica que consiste em avaliar criticamente a plausibilidade do que ele disse. É irrelevante para a verdade ou falsidade de uma teoria filosófica que tenha de facto sido defendida por determinado filósofo ou não. O que se pretende discutir em filosofia são teorias e argumentos interessantes conceptualmente, independentemente de terem sido defendidos historicamente. A lógica fornece instrumentos para afastar logo à partida aquelas teorias e argumentos que são insustentáveis conceptualmente, ainda que tenham sido defendidos historicamente.

Para que qualquer destes dois papéis que a lógica tem na filosofia (detectar a validade dos argumentos e a consistência das teorias) possa na verdade ser alcançado é imperioso que se proceda a uma clarificação conceptual de forma a saber com razoável precisão o que está a ser afirmado. Este é o papel mais básico que a lógica (agora numa acepção mais lata) tem na filosofia. Este papel clarificador não pode ser desprezado.

Um exemplo concreto desta capacidade clarificadora da lógica é o seguinte. Um argumento péssimo que por vezes se ouve afirma que as inconsistências não só não podem ser evitadas, como nem devem sê-lo, pois o mundo é ele mesmo inconsistente. Este argumento é péssimo porque resulta de uma confusão conceptual básica. Que diria o leitor se eu lhe afirmasse que o Mário Soares não é divisível por dois de forma a que o resto seja zero uma vez que é um número ímpar? Diria que apesar de o Mário Soares ser uma pessoa, não é o número um e que só os números, mas não as pessoas, são divisíveis por outros números. Claro! O mesmo se passa com a questão da inconsistência. Não se pode afirmar que o mundo é inconsistente porque o mundo não é constituído por proposições; e só as proposições podem ser inconsistentes. As inconsistências só podem existir nas nossas teorias (que são compostas de proposições) acerca do mundo. Mas as inconsistências são insustentáveis porque de uma contradição segue-se logicamente tudo. Logo, se temos uma teoria inconsistente isso significa que tudo, incluindo a negação da nossa teoria de partida, tem de ser considerado verdadeiro. Uma teoria inconsistente é uma fantasia que não permite conhecer melhor o mundo.

É a lógica, no sentido mais lato da palavra, que permite fazer distinções conceptuais básicas que clarificam os argumentos e as teorias filosóficas. A noção de predicados de primeira e segunda ordem, por exemplo, é crucial para que se evitem argumentos e teorias que não podem conduzir à verdade. Se afirmarmos

As pessoas são numerosas e Sócrates é uma pessoa.
Logo, Sócrates é numeroso,

percebe-se facilmente que algum erro foi cometido algures no raciocínio, porque a conclusão é manifestamente desprovida de sentido, apesar de as premissas serem verdadeiras. O que se passa é que o predicado “ser numeroso” é na verdade um predicado de segunda ordem, uma vez que se aplica à classe das pessoas, mas não aos elementos que constituem essa classe, isto é, as próprias pessoas. Da mesma maneira que não podemos dizer que a classe das pessoas é mortal, apesar de todos os seus elementos — as pessoas — o serem, também não podemos dizer que os elementos da classe são numerosos, pois este é um atributo da classe. Ou, noutro exemplo, não podemos dizer que a classe das coisas verdes é ela própria verde; os seus elementos é que são verdes. Nestes casos não precisamos da lógica para nada, uma vez que o seu carácter empírico e elementar nos permite perceber imediatamente que alguma coisa está errada. Mas o que poderá acontecer quando não temos o critério da experiência para nos guiar (o que é típico na filosofia)? Só a lógica permite afastar da nossa discussão aqueles argumentos que não vale a pena considerar por serem inválidos. Pense-se nas confusões que podem surgir quando se confunde a classe das coisas que existe, a que se chama muitas vezes “o Ser”, com os elementos que a constituem; pense-se nos predicados que se podem atribuir à classe das coisas que existem, mas que não se podem atribuir às coisas que pertencem à classe, e vice-versa.

Lógica, retórica e filosofia

Não posso deixar de abordar um tema de que se fala muito hoje em dia: a retórica. Uma tese que quero clarificar é a que afirma que a lógica é insuficiente como instrumento filosófico por ser puramente formal, e que cabe à retórica o verdadeiro papel criativo na argumentação filosófica. Para discutir esta ideia é necessário distinguir dois conceitos opostos de retórica. Por “retórica” podemos entender um conjunto de regras que têm por objectivo único tornar mais clara a expressão dos argumentos. Mas acontece que por “retórica” pode entender-se outra coisa muito diferente, a saber, a arte do engano, tão duramente criticada por Platão e Aristóteles, que consiste em conseguir convencer os outros sem que tenhamos boas razões para sustentar as nossas posições.

O papel da verdadeira retórica pode ser ilustrado com o seguinte argumento:

P1) Se desejarmos apurar as capacidades cognitivas dos alunos, temos de lhes ensinar a formular com clareza, precisão e criatividade os problemas, teorias e argumentos filosóficos.
P2) Se concebemos a filosofia como uma actividade cognitiva, o objectivo do seu ensino será apurar as capacidades cognitivas dos alunos.
C) Logo, se concebemos a filosofia como uma actividade cognitiva, temos de ensinar os alunos a formular com clareza, precisão e criatividade os problemas, teorias e argumentos filosóficos.

Do ponto de vista estritamente lógico é indiferente apresentar o argumento por esta ordem, ou inverter a ordem e começar por P2 em vez de P1. No entanto, o argumento é mais facilmente compreensível se começarmos por P2. A retórica, entendida no bom sentido da palavra, aconselha-nos a começar por P2 (Cf. Weston, Anthony, A Arte de Argumentar, Lisboa, Gradiva, 1996, pág. 21–23.).

Mas a retórica, entendida no mau sentido da palavra, aconselha-nos a não mudar a ordem, precisamente pela mesma razão. A diferença é que enquanto a boa retórica é uma actividade que tem como objectivo a clareza, a má retórica tem por objectivo convencer o interlocutor a qualquer preço — e é mais fácil convencer o interlocutor quando ele não consegue avaliar o argumento em causa, uma vez que assim também não consegue refutá-lo. Enquanto a boa retórica tem por objectivo oferecer a possibilidade do pensamento crítico, a má retórica tem por objectivo impedir o pensamento crítico e convencer a outra pessoa, independentemente de existirem ou não boas razões para aceitar o que está em causa.

Nenhuma retórica pode transformar um argumento mau num bom argumento; o que a má retórica pode fazer, no máximo, é disfarçá-lo; mas não nos ajuda a descobrir a verdade. A verdadeira retórica, entendida como instrumento de estudo da verdade, depende da lógica. Não pode por isso afirmar-se que o papel da retórica é mais importante para a filosofia do que o papel da lógica. A retórica complementa a lógica; não pode substitui-la.

Conclusão

A lógica tem estes três papéis:

1) dizer claramente se determinada conclusão se pode ou não seguir de determinadas premissas em certo argumento dedutivo;
2) dizer claramente se determinada conclusão é ou não consistente com verdades mais básicas; e
3) clarificar os argumentos e teorias filosóficos.

Acontece que estes papéis muito modestos da lógica são na verdade muito importantes porque de pouco mais nos podemos valer para avaliar a discussão detalhada, por vezes enervante, outras deliciosa, mas sempre estimulante, com os outros filósofos. Evitar o erro de raciocínio, a inconsistência e a obscuridade pode parecer pouco. Mas quando a experiência não pode dizer-nos onde está a verdade, é uma benesse que a lógica possa detectar a inconsistência — porque aí não pode estar a verdade —, detectar o erro de raciocínio — porque mesmo que aí esteja a verdade nós não podemos sabê-lo —, e clarificar as teorias e argumentos — para que a avaliação crítica seja realmente possível.

Para terminar, quero chamar a atenção para a diferença entre o estudo de uma disciplina e o uso dessa disciplina enquanto instrumento. A diferença é clara: uma coisa é usar a matemática na engenharia naval, outra coisa muito diferente é estudar a própria matemática. O engenheiro naval não precisa de mais do que um conhecimento instrumental da matemática; os problemas da matemática não lhe dizem respeito. O mesmo se passa com a filosofia em relação à lógica, com a diferença que se pode alegar que a lógica é uma disciplina filosófica, ao passo que a matemática não é, claramente, uma disciplina da engenharia naval. O filósofo moral ou político não precisa de conhecer a lógica senão como instrumento (já o especialista em epistemologia ou em metafísica, em virtude do carácter do seu estudo, tem de conhecer melhor a lógica — sobretudo a lógica filosófica); para tal bastam alguns rudimentos (Rudimentos que podemos encontrar em Lógica: Um Curso Introdutório, de W. H. Newton-Smith, Gradiva, Lisboa, 1998). Só os lógicos conhecem a lógica profundamente, estudam e discutem os seus problemas; pode defender-se que os lógicos são uma subclasse dos filósofos porque as decisões fundamentais a tomar quanto à natureza da lógica são decisões filosóficas e não lógicas. Mas mesmo que se defenda que todos os lógicos são filósofos, não se segue daí que se tenha de defender que todos os filósofos são especialistas em lógica, tal como ninguém defende que todos os engenheiros navais são especialistas em matemática. Por outro lado, não podemos fazer hoje filosofia seriamente sem o auxílio da lógica, como procurei mostrar nestas páginas, tal como não podemos seriamente fazer engenharia naval sem o auxílio da matemática.

Desidério Murcho
Artigo publicado na Revista Filosófica de Coimbra, n.o 14, 1998, pp. 389-399.
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ISSN 1749-8457