A razão não se reduz à lógica e à matemática. O subjectivismo com respeito à lógica derrota-se a si mesmo directamente. O subjectivismo no que respeita a outros tipos de raciocínio só pode ser refutado mostrando que entra em competição directa com afirmações internas a esse raciocínio e que, num debate justo, perde. Com respeito à ciência, à história ou à ética, a resistência à perspectiva externa vem do interior dos domínios que estão sendo postos em causa — apesar de isso não acontecer, como no caso da lógica, em virtude de a própria atitude de colocá-los em causa pressupor esses domínios.
As formas mais básicas e simples de raciocínio, na lógica e na aritmética, colocam sem dúvida problemas filosóficos profundos; mas é impossível levar a sério a ideia de que não passam de manifestações de práticas contingentes e locais. Temos de concebê-las como pelo menos universalmente válidas, não só porque não conseguimos concebê-las como inválidas, mas também porque não conseguimos conceber um ser que seja capaz de as compreender e que não considere também que são auto-evidentemente válidas: nada nos permitiria atribuir a qualquer pessoa uma descrença no modus ponens ou na proposição de que 2 + 2 = 4.
Contudo, a maior parte das questões interessantes cuja resposta procuramos na razão são muito mais difíceis. Não consideramos que as respostas sejam auto-evidentes ou, se o considerarmos, reconhecemos que a aparência de certeza pode ser enganadora. Como afirmei, este reconhecimento é muitas vezes apropriado, mesmo nas situações em que estamos raciocinando sobre verdades necessárias. O conhecimento ou a crença a priori não tem de envolver a certeza, apesar de ter maiores recursos para produzir certeza do que o conhecimento a posteriori. Mas fora do domínio da matemática e da lógica, a incerteza é a norma. Na maior parte dos casos, o raciocínio não nos fornece uma demonstração, mas apenas razões para acreditar numa conclusão plausível, ou para preferi-la ligeiramente às alternativas.
Isto é assim na ciência, noutras disciplinas empíricas e na ética. As razões que apoiam uma conclusão não excluem, tipicamente, a possibilidade da sua falsidade, ainda que sejam muito fortes. E por vezes há razões suficientes que apoiam alternativas consistentes, de modo que podemos não estar certos de que a conclusão a que temos de chegar seja realmente apoiada pela preponderância de razões: aceitamos que pessoas razoáveis possam discordar e podemos muitas vezes imaginar que chegamos a conclusões diferentes daquela a que efectivamente chegámos. Muitas vezes, o raciocínio, em sentido estrito, não sustenta as nossas conclusões directamente: limita-se a justificar a nossa confiança ou desconfiança nos juízos e intuições mais específicos que nos ocorrem naturalmente ou em resultado da experiência. No entanto, em tais casos, acreditamos que aquilo em que estamos pensando tem uma resposta, que não é relativa ou subjectiva, e que os nossos processos de raciocínio procuram, falivelmente, captar as razões que sustentam essa resposta numa ou noutra direcção. É este tipo de invocação da razão que é mais vulnerável aos diagnósticos alternativos e às acusações de autoengano e falsa universalização. Essas acusações são por vezes verdadeiras e a consciência da sua possibilidade deveria abrandar a nossa confiança — que terá, em qualquer caso, de ser modesta, devido à clara possibilidade de erros no raciocínio e às limitações dos dados disponíveis. Mas não são inevitavelmente verdadeiras; e o problema é expor o processo de modo a explicar isto. Como explicar que no raciocínio lógico, empírico ou prático, que não é incontestável, possamos pretender, apesar disso, estar a usar métodos, numa versão possivelmente incompleta ou inexacta, cuja validade ideal é universal e não relativa a qualquer aspecto mais contingente e específico de nós ou da nossa comunidade?
No pensamento deste tipo, a própria procura do universal é um princípio regulador. Isso torna-se evidente na concepção kantiana do raciocínio moral, mas é também verdadeiro noutras áreas, pois testamos parcialmente as nossas razões perguntando se serão aplicações de princípios válidos em geral, procurando contra-exemplos e usando casos ao fazê-lo, quer efectivos quer imaginados. Pelo menos isto é verdadeiro: a não ser que pensemos que qualquer pessoa deveria concluir o mesmo a partir das mesmas premissas, não podemos encarar a conclusão como algo que está justificado pela razão. As razões são, por definição, gerais e nós procuramos sempre alargar a sua generalidade. Logo, parte da questão é saber se o próprio apego a este método é algo para o exterior do qual não podemos sair, constituindo a forma de avaliação final das nossas crenças — incluindo crenças sobre o que é e o que não é um objecto legítimo de raciocínio, e crenças sobre as fronteiras entre o universal e o não-universal.
O processo começa na concepção simples de uma realidade objectiva, na qual outros pontos de vista subjectivos, incluindo os nossos, estão integrados. Isto é inevitável, pelo menos enquanto possibilidade. Apesar de ser extremamente difícil de completar, e em certos aspectos insusceptível de o ser, a tentativa de completá-la leva-nos a procurar métodos universalmente válidos, pois esse é o único modo de sujeitar os nossos pontos de partida pessoais a um qualquer tipo de teste que determine quão subjectivos são. Além disso, o que é mais arriscado, no nosso modo de proceder consideramos que nós e as nossas experiências são amostras de um mundo que esperamos descobrir que é, a um nível qualquer, igual em todo o lado (tanto no tempo como no espaço), de modo que a ordem que descobrimos ao tentar explicar o que observamos tem em vista algo mais vasto. Por outras palavras, nada há de especial com respeito a nós: cada um de nós é apenas uma parcela do Universo. Uma vindicação deste tipo de razão exigiria que tornássemos crível que a procura de ordem, e alguns dos métodos de identificação dessa ordem, sobreviverão a todas as tentativas de interpretá-los como meramente subjectivos — porque todas essas interpretações são derrotadas pelos juízos de primeira ordem cuja autoridade estão a tentar derrotar. Isso seria estruturalmente análogo à situação que ocorre na lógica, mas sem o mesmo tipo de necessidade nos resultados.
Esta questão extremamente geral é, até agora, compatível com a posição de que a base racional que não pode ser justificada é muito pequena — talvez até se restrinja à lógica — e que tudo o resto pode ser compreendido enquanto característica de um tipo de ponto de vista mais particular. É também compatível com a posição de que a razão tem um papel fundamental na lógica, na matemática e na ciência empírica, mas que todos os exemplos ostensivos da razão prática ou ética se compreendem melhor como manifestações de disposições psicológicas específicas. As conclusões definitivas nestas matérias dependem de uma investigação mais substancial da questão de saber se, em cada domínio, a procura do universal faz sentido e se, nesse caso, será razoável acreditar que os nossos próprios esforços incertos nesse sentido são reflexos de algo que poderia ser aperfeiçoado. Neste ensaio, irei discutir o raciocínio factual e científico, mas apenas nos termos mais gerais. O título pode ser ligeiramente enganador. Nada tenho a dizer sobre teorias formais da indução e da confirmação, nem sobre a relação que têm com a prática do pensamento empírico e científico. O meu interesse centra-se na questão de saber que tipo de coisa é objecto destas teorias.
A confiança na razão pode coexistir com dúvidas muito substanciais no que respeita aos resultados e até com o cepticismo radical. Na verdade, o cepticismo epistemológico tradicional depende da objectividade da razão: é sempre o produto de raciocinar a favor da conclusão de que várias possibilidades alternativas mutuamente exclusivas são, todas elas, compatíveis com a nossa situação epistémica efectiva e que é portanto impossível decidir racionalmente a favor de qualquer uma delas. O cepticismo radical tem, pois, de confiar em algumas ideias que não são colocadas em dúvida e que se presume terem conteúdo objectivo. Mas o mesmo tem de ser verdadeiro no que respeita a formas menos radicais de incerteza — a confiança limitada que normalmente temos na maior parte das nossas crenças, incluindo a crença, com algumas reservas, em teorias científicas aceites como as melhores candidatas do momento, apesar de sabermos que serão suplantadas. O raciocínio que sustenta essas crenças tem de ser também incondicional, a um certo nível, caso contrário não poderia mostrar-nos o que poderia, objectivamente, ocorrer.
O objectivo geral desse raciocínio é dar sentido ao mundo em que nos encontramos e compreender o modo como o mundo nos surge, a nós e aos outros. Procedemos gerando, comparando e classificando versões possíveis, e são estas comparações que são a substância do processo. Mas começamos partindo da ideia de que o mundo é de uma certa maneira, e esta é uma ideia para a qual penso não haver alternativa inteligível e que não pode ser subordinada ou derivada de qualquer outra coisa. O meu objectivo é defender que nem mesmo o subjectivista pode fugir ou elevar-se acima desta ideia. Ainda que o subjectivista deseje oferecer uma análise desta ideia em termos subjectivos ou relativos à comunidade, a sua proposta tem de ser entendida como uma descrição do modo como é o mundo e, portanto, tem de ser entendida como inconsistente com descrições alternativas, com as quais pode ser comparada em termos de plausibilidade. Não chegamos à ideia de como é o mundo a partir das aparências; ao invés, começamos com essa ideia, uma vez que as aparências de que partimos são maneiras como o mundo parece que é. Podemos decidir, depois de alguma reflexão e observação complementares, que algumas dessas maneiras como o mundo parece que é são meras aparências e que o mundo não é afinal dessa maneira. Mas isto representa sempre uma modificação na nossa perspectiva do mundo, baseada em possibilidades alternativas e em razões para preferir algumas a outras. O que não podemos evitar é a ideia de que algo ocorre, ainda que não saibamos o que ocorre. As dúvidas acerca do carácter fidedigno ou da objectividade das nossas percepções e juízos têm de ser baseadas em revisões da nossa perspectiva do mundo; não podem fugir-lhe por completo. Começamos com certas impressões sobre como são as coisas, lançamos dúvidas sobre a objectividade de algumas delas por meio de mais ideias (incluindo ideias sobre a nossa própria natureza e sobre a nossa interacção com o resto do mundo) e rejeitamos algumas das aparências a favor de outras crenças sobre como as coisas são realmente. Tudo isso, incluindo as observações sobre nós mesmos, está firmemente integrado num quadro de referência de pensamento sobre o mundo, quadro esse que não é na primeira pessoa.
Mas como gera isto métodos específicos nos quais possamos ter alguma confiança? Afinal, o mero reconhecimento de uma distinção entre aparência e realidade não fornece um método para descobrir a realidade.
O modo como efectivamente procedemos caracteriza-se por um elevado grau de inércia cognitiva, e isso implica que a visão do mundo que efectivamente temos é, num grau considerável, a expressão de uma perspectiva. Começamos por uma perspectiva natural do mundo e somos levados a abandoná-la descobrindo que, de uma maneira ou de outra, é inconsistente com as nossas observações. Isto cria um hiato que tentamos preencher imaginando mundos possíveis alternativos que, se existissem, seriam mais consistentes com o que observamos. Os próprios juízos de consistência envolvem a lógica, mas não podem produzir a demonstração lógica da verdade de tal imagem, a não ser que se possa mostrar que é a única imagem consistente com as observações — o que, dada a natureza fragmentária dos dados, provavelmente nunca acontece. A nossa atitude tem de ser “As coisas poderiam ser assim, dada a informação disponível”. O resto depende da questão de saber se há outros candidatos e, caso existam, de como os avaliamos comparativamente.
A força motriz por detrás de todo o raciocínio empírico é a procura de ordem. Isto pode assumir formas muito simples, como quando concluo com base nas malhas de um cão que se trata do mesmo animal que vi ontem. Mas conduz a níveis cada vez mais elevados, à medida que procuramos regularidades mais amplas por detrás das regularidades mais específicas que inferimos a partir da observação. Nem sempre encontramos ordem no seio dos fenómenos, mas procurá-la é a única maneira de alargar a nossa imagem do mundo e de preencher os hiatos entre os dados observacionais. A procura de ordem pode muitas vezes fazer extraviar as pessoas — por vezes de modo radical, como acontece com a astrologia e outras superstições. Mas o remédio consiste em testar rigorosamente sistemas deficientes contra o pano de fundo do padrão de uniformidade da natureza e não em abandonar esse padrão.
Penso ser possível entender a exigência de ordem como uma consequência directa da ideia de uma realidade objectiva, independente de observações e observadores particulares. As suas observações podem ser diferentes, mas os acontecimentos observados e as leis que os regem têm de ser as mesmas. Mesmo a ideia de um único objecto ser visto em duas ocasiões por um único observador implica alguma forma de regularidade natural; a ideia de dois observadores exige mais regularidade; e a ideia de um acontecimento inobservado mas análogo implica ainda mais regularidade. E o processo não acaba aqui. Uma concepção inteiramente realista das leis da natureza terá de tentar interpretá-las também de maneiras que sejam independentes de qualquer perspectiva ou ponto de vista observacional específicos — caso contrário, poderiam ser meramente modos de sistematizar as nossas observações. Para serem verdadeiramente independentes da mente, as leis — e não apenas os acontecimentos por elas regidos — têm de ser independentes de qualquer perspectiva e têm de explicar por que razão as coisas têm a aparência que têm quando observadas de diferentes pontos de vista privilegiados no mundo.
Na física moderna, esta ideia restringe o desenvolvimento de teorias por meio de uma exigência de simetria — a ordem natural real deve ser identificada com o que é invariante dos pontos de vista de todos os observadores, de modo a que todos possam chegar, seja qual for a sua situação, à mesma descrição da realidade comum na qual estão situados. A exigência não se aplica apenas a estados de coisas específicos mas também a leis gerais. Foi esta exigência de simetria ou invariância na descrição da natureza que conduziu Einstein primeiro à teoria da relatividade restrita e depois à da relatividade geral e que desempenhou aparentemente um papel de grande importância na formação da teoria quântica. A procura de ordem e leis da natureza parece-me ser conduzida, da minha perspectiva amadora, pela ideia mais lata de que as nossas experiências e observações locais, assim como as regularidades que nelas detectamos, constituem manifestações de outra coisa, uma coisa que nos inclui mas sobre a qual nenhum de nós tem uma perspectiva privilegiada. Cada um de nós deve conceber as nossas experiências como algo que nos apresenta uma amostra arbitrária ou aleatória do universo.
Há duas acusações possíveis de subjectivismo relativamente a este método. Em primeiro lugar, a exigência de ordem não pode em si ser racionalmente justificada, nem corresponde a uma necessidade auto-evidente, como a aritmética ou a lógica. De um ponto de vista subjectivista, o pressuposto da uniformidade da natureza, do qual quer a ciência quer o raciocínio empírico comum dependem, é apenas a projecção da nossa necessidade psicológica de um certo tipo de imagem do mundo e não um instrumento intrinsecamente fidedigno para chegar à verdade “independente da mente”.
Em segundo lugar, até mesmo a definição do que constitui ordem parece depender de nós. Pois significa que, em algum nível de descrição, causas semelhantes terão efeitos semelhantes em ocasiões diferentes, e assim por diante — mas a única medida de semelhança que nos está disponível é o que consideramos semelhante, seja pela percepção, seja por métodos mais técnicos de detecção e medida. Se as coisas forem assim, o método de chegar a conclusões factuais pelo processo de encontrar a melhor explicação ou teoria global para dar conta dos dados é duplamente subjectivo — em primeiro lugar, no seu objectivo e, em segundo, naquilo que conta como sucesso.
Penso que a única maneira de resistir a esta acusação é argumentar que se essas análises psicológicas forem levadas a sério enquanto hipóteses, serão, elas mesmas, desacreditadas pelos mesmíssimos padrões que se propõem pôr em causa. Mas poderemos apresentar este argumento sem incorrer numa petição de princípio?
Penso que podemos e que há uma diferença interessante a este respeito entre o cepticismo epistemológico e o tipo de subjectivismo que desejo disputar. Quando G. E. Moore rejeita o cepticismo acerca do mundo exterior com base no facto de ter duas mãos, está a incorrer numa petição de princípio — porque, se não há objectos materiais, ele não tem duas mãos; e ele nada fez para disputar o argumento do céptico a favor da possibilidade da inexistência de objectos materiais, nem a favor da impossibilidade de quaisquer dados contra a verdade desta afirmação. Uma refutação que não incorresse numa petição de princípio teria de resistir ao céptico quando este se dirigisse para a sua conclusão.
Ao argumentar contra o subjectivismo, por outro lado, não estamos a lidar com uma proposta de meras possibilidades que não podem ser excluídas, mas com uma interpretação positiva das nossas ideias. Para ganhar aceitação, tal interpretação tem de sobreviver competindo com outras afirmações — e isso inclui as ideias que são objecto de interpretação, desde que não tenham sido afastadas. Se o subjectivista não conseguir persuadir-nos a suspender o juízo sobre o conteúdo objectivo dessas ideias, terá sucumbido — tal como o céptico terá sucumbido se não nos fizer duvidar que temos mãos. É por isso que penso que resistir ao subjectivismo pode ter origem no conteúdo das próprias ideias objectivas, sem com isso incorrer necessariamente numa petição de princípio. Não é uma petição de princípio desde que nos baseemos nas próprias ideias e não na afirmação de segunda ordem de que essas ideias têm de ser interpretadas objectivamente.
A proposta subjectivista não defende que não sabemos se as nossas crenças sobre o mundo são correctas mas, antes, que é um erro interpretá-las como crenças sobre uma ordem natural independente da mente. Pelo contrário, as nossas crenças devem ser encaradas como características gerais da nossa perspectiva, prática linguística ou ponto de vista. O que defendo é que isto é uma imagem alternativa do mundo — na qual o elemento central é um conjunto de perspectivas humanas — e que compete directamente com os juízos objectivos que pretende desalojar. Propor apenas esta interpretação não faz automaticamente esses juízos mudar de carácter. Produz, ao invés, uma confrontação entre duas hipóteses: por exemplo, a hipótese de que os objectos se atraem mutuamente com uma força directamente proporcional ao produto das suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles, contra a hipótese de que essa atracção mútua é uma propriedade de objectos unicamente tal como estes nos surgem (ou tal como são referidos no nosso jogo de linguagem), e assim por diante. A menos que a primeira hipótese possa ser eliminada por outros motivos, continua a ser consideravelmente mais plausível do que a segunda.
As confrontações entre afirmações irrestritas de primeira ordem e reinterpretações relativizantes não têm de ter sempre como resultado a vitória das primeiras. Uma pessoa que tenha sido educada de modo a pensar que é um mal que as mulheres exponham os seios em público pode acabar por se aperceber a certa altura que esta é uma convenção da sua cultura e não uma verdade moral irrestrita. Claro que essa pessoa poderá continuar a insistir, depois de examinar os dados antropológicos, históricos e sociológicos, que é em si um mal que as mulheres exponham os seios e que as culturas que não reconheçam o facto estarão erradas. Mas é improvável que esta reacção sobreviva à confrontação; não tem, pura e simplesmente, bases suficientes (sem, por exemplo, uma explicação religiosa da razão pela qual a exposição é um mal).
Juízos irrestritos sobre astronomia, pelo contrário, fazem parte de uma imagem do mundo muito robusta em comparação com a alternativa kantiana. A menos que, como Kant pensava, se trate de uma imagem que pode ser eliminada a priori, não há razão para que esses pensamentos não pesem, eles mesmos, contra uma interpretação kantiana deles. Do mesmo modo, alguns juízos morais de primeira ordem podem resistir às interpretações emotivistas com o seu próprio peso.
Em cada um desses casos é-nos apresentado um conflito entre duas concepções do mundo e do nosso lugar nele. Ambas as concepções são incompletas em vários aspectos. Não há um ponto de vista neutro a partir do qual possam ser avaliadas, de modo que têm de competir directamente entre si. O resultado pode, por vezes, ser um empate, mas não é uma petição de princípio encarar a credibilidade de primeira ordem de uma proposição familiar como uma razão para rejeitar uma interpretação relativista ou subjectivista dessa proposição. Claro que podemos estar enganados, mas esses erros são possíveis em qualquer lado. (Se duas testemunhas se contradizem, sustentando cada uma que a outra mente, podemos no entanto concluir que a primeira mente com base no testemunho da segunda; ainda que estejamos enganados, não estaremos a incorrer numa petição de princípio.) Não há alternativa à consideração de alternativas e à tentativa de decisão.
Uma das atracções de uma interpretação subjectivista das afirmações empíricas tem sido sempre a de que isso tornaria o cepticismo radical impossível, porque o cepticismo depende de se interpretar objectivamente o conteúdo das afirmações empíricas — científicas ou mais comuns —, tomando depois consciência da existência de um hiato lógico entre elas e as suas bases empíricas. Um exemplo recente de subjectivismo, habitualmente apresentado como uma maneira de transcender a distinção fora de moda entre subjectivo e objectivo, é a perspectiva conhecida como “realismo interno”, segundo a qual a nossa imagem do mundo aparentemente objectiva deve ser entendida essencialmente como um produto criativo da nossa linguagem e ponto de vista, devendo a verdade das nossas crenças ser entendida como a sua sobrevivência num desenvolvimento ideal desse ponto de vista. Se, como Hilary Putnam defendeu, a verdade não é senão a “aceitabilidade racional idealizada”, e se “aceitabilidade” significa “aceitabilidade para nós”, o hiato lógico entre raciocínio e mundo desaparece.
Esta posição acrescenta uma restrição às nossas afirmações empíricas que penso ser inconsistente com o seu conteúdo, do mesmo modo que o subjectivismo sobre a lógica é inconsistente com o seu conteúdo. Além disso, a única maneira de dar sentido literal à restrição é em termos de uma concepção do mundo e do nosso lugar nele que não seja, ela mesma, subjectiva, mas de acordo com a qual todo o nosso sistema de crenças substantivas, pelo contrário, seja subjectivo. Se desejamos adoptar uma perspectiva do mundo que coloque no seu seio os nossos próprios pensamentos e que responda também à exigência de uma ordem natural, terá de ser uma perspectiva sem essas restrições e terá de estar sujeita ao mesmo tipo de raciocínio sobre como são as coisas que se aplica em qualquer outra parte — e não uma perspectiva meramente “interna”.
O realismo interno não passa o seu próprio teste de aceitabilidade racional. Aquilo que, na verdade, achamos racionalmente aceitável é uma perspectiva do mundo segundo a qual nos situamos no mundo e chegamos a crenças sobre o mundo que são confirmadas ou infirmadas por meio das nossas observações do que acontece. Mesmo que concluíssemos, como alguns físicos no que respeita à teoria quântica, que à melhor explicação sistemática do que observamos não podemos fornecer uma interpretação realista, isso seria ainda uma crença sobre como é o mundo, sem mais restrições — e não uma crença que seria correcto restringir com uma leitura “internalista”. Usa-se a razão para chegar a essa crença e o raciocínio não é apenas um desenvolvimento do nosso ponto de vista, mas um ideia objectiva sobre como são as coisas.
De modo mais rigoroso, o nosso ponto de vista — o que aceitamos com base na razão — é um conjunto de crenças sobre como as coisas efectivamente são, juntamente com o reconhecimento copioso de que há muito que não sabemos e talvez muito que nunca poderemos saber sobre como as coisas realmente são. Aqui, como no caso da lógica e da aritmética, não podemos sair para o exterior das nossas ideias sobre o que ocorre, concebendo-as meramente como expressão de um ponto de vista, no seio do qual o seu conteúdo tem de ser situado. O seu conteúdo, incluindo a ideia de uma realidade independente da mente, domina qualquer imagem psicológica ou social auto-reflexiva desse género. Poderíamos pôr a questão nos seguintes termos: não há maneira de determinar que uma crença é racionalmente aceitável excepto pensando sobre a questão de saber se será verdadeira — pensando sobre os dados e os argumentos e estando aberto a considerar como relevante seja o que for que qualquer pessoa apresente. Dizer que a sua verdade é a sua aceitabilidade racional priva de todo o conteúdo tanto a noção de verdade como a noção de aceitabilidade.
A crença de que o mundo é ordenado, e de que o nosso sentido do que constitui ordem (que propriedades são susceptíveis de ser usadas na formulação de leis e inferências) é uma indicação de como o mundo está organizado, está bem confirmada em algumas áreas, quando descobrimos que as hipóteses a que somos conduzidos — teorias sobre inobserváveis, assim como as leis que os regem — prevêem observações que não são, elas mesmas, susceptíveis de ser explicadas pela nossa crença nessas hipóteses. O facto de a observação estar “subordinada à teoria” parece-me um aspecto insignificante, que de maneira alguma vai no sentido de mostrar que o processo de confirmar teorias pela observação é circular ou não-objectivo. Pode ser necessária alguma teoria, sobre telescópios ou sobre fotografia, para interpretar as fotografias astronómicas que mostram a curvatura dos raios de luz provocada pelo campo gravítico do Sol, mas a observação crucial — a de que as imagens das estrelas nas imediações do Sol estão deslocadas para fora — não depende da teoria que essa observação confirma — nomeadamente, a teoria da relatividade geral.
A possibilidade de confirmação não-circular é também, penso, a resposta a dúvidas sobre o papel do nosso sentido natural da semelhança na determinação do que conta para nós como regularidade ou lei. O facto é que só podemos despromover uma semelhança ou uma categoria e dar-lhe o estatuto de mera aparência ou semelhança para nós caso se mostre que não está ligada de modo sistemático a outras regularidades observadas. Mas se algumas das regularidades que observamos, incluindo as reveladas pela medição, mostrarem estar sistematicamente correlacionadas com outras que emirjam de diferentes tipos de observação ou medição, então a hipótese mais plausível é que não se trata de interferências da nossa perspectiva sobre o mundo mas, antes, de produtos da interacção sistemática do mundo connosco. A imagem científica do mundo físico substituiu desse modo a imagem mais associativa e subordinada ao significado, característica de estádios anteriores do desenvolvimento da nossa cultura. Como modo de compreender a natureza inanimada, este último método revela-se circular, uma vez que as únicas “teorias” que é capaz de ocasionar são meros sumários das aparências ou então sistemas delirantes que dão origem a aparências que lhes correspondem.
No entanto, tem de se conceder que há qualquer coisa de inevitavelmente circular na confirmação empírica das suposições de que o mundo é ordenado e de que os fenómenos particulares podem ser explicados por meio de leis gerais; pois quando formulamos uma lei de um certo tipo com base nas nossas observações, confirmando-a depois pela experimentação, a confirmação, tal como a formulação original, depende do juízo de que a melhor explicação sistemática da relação entre as observações originais e os novos resultados experimentais será aquela que os relacionar de modo sistemático — aquela de acordo com a qual isso não é acidental. Uma pessoa que dissesse continuamente que os resultados que aparentemente confirmam a lei são apenas coincidências seria louca, mas não estaria a contradizer-se. A ideia de um mundo regido por leis não é apenas a ideia de que há um certo sistema no seio das nossas observações efectivamente realizadas, mas que este sistema pode ser explicado por uma ordem que tanto rege o que é possível como o que é efectivo, ordem essa que não é directamente observável. Precisamos de nos apoiar na mesma ideia geral tanto para chegar a hipóteses iniciais sobre esta ordem como para determinar se as hipóteses foram confirmadas ou infirmadas.
Mas na verdade não há alternativa. A tentativa de reconstruir a imagem ordenada do mundo como uma projecção das nossas mentes tropeça na necessidade de nos colocar no mundo desse modo ordenado. Ao tentar dar sentido a esta relação somos inevitavelmente levados a usar o mesmo tipo de raciocínio, baseado na procura de ordem. Mesmo que decidamos que ao percepcionar ordem estamos, por vezes, perante ilusões e erros, isso será porque uma teoria melhor, pelos mesmos padrões, pode justificar a existência desses erros e ilusões. Em última análise, tudo o que podemos fazer é pensar sobre como é o mundo, incluindo-nos a nós e à nossa relação com o resto do mundo; e a única maneira de fazer isso é colocar a nossa própria experiência num cenário mais vasto, como o cenário sugerido pelo tipo habitual de raciocínio empírico. Certamente que não é uma verdade necessária que o mundo seja ordenado, quanto mais que possamos compreender a sua ordem. Aspectos substanciais da realidade podem nunca se submeter a este tipo de compreensão intelectual. Mas seja o que for de que possamos ter conhecimento tem de estar pelo menos relacionado de modo ordenado connosco — e uma parte extraordinária já demonstrou estar ao nosso alcance; dado o que alcançámos até agora, é razoável tentar continuar.
O verdadeiro problema é como compreender a inevitabilidade da ideia de realidade objectiva, que nos obriga a concluir interpretações relativistas ou subjectivistas das nossas ideias como explicações rivais do mundo, em competição com a alternativa objectivista. Isto é, obriga-nos a considerar, se nos for pedido que duvidemos em algum aspecto da objectividade das concepções que efectivamente temos, se uma versão alternativa da realidade, conhecida ou desconhecida, terá mais probabilidade de ser verdadeira. Uma interpretação subjectivista da razão torna-se assim apenas uma hipótese entre outras sobre o mundo e sobre a nossa relação com ele, o que a faz ficar em última análise sujeita à avaliação racional, de modo que o objectivo da avaliação racional das nossas crenças se revela inevitável. O subjectivismo sobre a razão humana derrota-se a si mesmo, porque tem de ser avaliado como uma hipótese sobre a nossa relação com o mundo.
Isto não seria necessário se uma concepção puramente perspectivista fosse uma opção viável — uma concepção na qual as perspectivas não estivessem de modo algum situadas em qualquer realidade objectiva. Mas penso que esta não é uma opção viável. Basicamente, penso que o cogito de Descartes está correcto. É impossível concebermo-nos a nós próprios excepto como algo que existe no mundo — ainda que o mundo pouco possa conter para além disso. Mas é necessário afirmar mais do que isso, de modo a contrariar a restrição sobre o âmbito da razão proposta por Kant.
Kant reconheceu que não poderíamos evitar concebermo-nos como parte de um mundo com uma existência independente, mas negou que a razão ou a percepção nos dissesse fosse o que fosse sobre como esse mundo era em si — nem mesmo sobre nós mesmos como parte desse mundo. Na verdade, segundo Kant, nem sequer podemos formar uma concepção de como será o mundo em si, porque a aplicação de qualquer uso da nossa capacidade para raciocinar, para formar teorias sobre a realidade objectiva e para descobrir a melhor explicação para as aparências, está limitada ao mundo dos fenómenos — o modo como as coisas nos surgem.
Apesar de não ser estritamente relativista, uma vez que funda a razão numa perspectiva universal para os seres humanos, esta é, na história da filosofia, a forma mais famosa de subjectivismo sobre a razão. Se fosse legítima, impediria que fossem aplicados a si mesma os métodos habituais de raciocínio sobre o mundo: estaria isenta das formas habituais de avaliação pelas quais avaliamos uma proposta sobre como são as coisas. Logo, é importante questionar este estatuto, uma vez que exemplifica, de certo modo, a dispensa de avaliação objectiva que está implícita em todas as perspectivas subjectivistas.
O idealismo transcendental kantiano não é uma tese sobre o mundo dos fenómenos mas sobre a relação entre o mundo dos fenómenos e mundo tal como é em si. Mas uma vez que afirma que o raciocínio científico comum só se aplica ao mundo dos fenómenos, isenta-se a si mesma das condições habituais de avaliação. A tese do idealismo transcendental não é em si produto dos juízos sintéticos a priori cuja validade se propõe explicar mas é, mesmo assim, uma afirmação a priori, baseada na convicção de que as coisas não poderiam ser de outra maneira, que é inconcebível que sejamos capazes de usar dados empíricos para fazer descobertas sobre as coisas tal como são em si.
Ora, se isto for mesmo inconcebível, ou autocontraditório, a história acaba aqui. Como Kant afirma, isso implica que, se as propriedades espaciais pertencem, supostamente, às coisas em si, o idealismo de Berkeley é inevitável. Mas há qualquer coisa de dúbio na insistência de que temos a ideia nua e crua do nosso lugar num mundo independente da mente, ao mesmo tempo que negamos a possibilidade lógica de qualquer coisa mais. Penso que, uma vez admitida esta ideia nua e crua, não podemos excluir a possibilidade de conceber hipóteses sobre esse mundo. Torna-se então necessário interpretar o próprio idealismo transcendental como uma dessas hipóteses — é a hipótese de que não sabemos coisa alguma sobre essas relações, responsáveis pelas aparências, entre nós e o mundo.
Não vejo como pode esta proposta ser compreendida de modo a não a colocar em competição com perspectivas mais mundanas sobre o nosso lugar no mundo e sobre as nossas relações com o resto do mundo, perspectivas que são sustentadas pelos métodos comuns de avaliação e explicação racional. A posição kantiana trata esses métodos como um aspecto das aparências para o qual não dispomos de qualquer explicação; mas por que razão haveria essa interpretação de ter prioridade sobre uma leitura linear? É verdadeiro que as duas leituras são mutuamente incompatíveis, de modo que se a perspectiva kantiana estiver correcta, os métodos comuns de raciocínio não podem ser usados para avaliá-la. Por outro lado, se persistirmos teimosamente em tentar pensar sobre como as coisas são realmente, a perspectiva kantiana transforma-se apenas numa hipótese entre outras, desprotegida face à avaliação e rejeição racionais.
Penso que não podemos ser impedidos de pensar sobre como as coisas são, sem restrições. Ao admitir a ideia nua e crua do mundo numénico, Kant está efectivamente a admitir o seguinte facto: não podemos dar sentido ao idealismo transcendental sem ela. Mas esse conceito nu e cru não é suficiente para aplacar a exigência de uma concepção do mundo. Para aceitar o idealismo transcendental teríamos de deixar de encarar as nossas formas habituais de pensar como ideias que são realmente sobre o mundo, e penso que não podemos fazer isso. Não podemos evitar considerar o idealismo transcendental como uma teoria minimalista da realidade, o que, portanto, nos força a considerar se será uma teoria verdadeira ou não.
Ao pensar sobre a questão, temos o direito de usar as formas de raciocínio que a teoria se propõe desqualificar como modos de determinar como o mundo é realmente — e não podemos evitar encará-las precisamente segundo aquela maneira que a teoria nos proíbe. Iremos perguntar se esta hipótese será mais plausível, face aos dados, do que as alternativas. Apesar de poder subsistir como possibilidade céptica, por refutar decisivamente, não irá ganhar automaticamente — e isto significa com efeito que será refutada, uma vez que é, supostamente, não uma mera possibilidade, mas uma certeza.
Neste, como noutros casos, o raciocínio derrota, por direito próprio, os esforços para considerar que se subordina a outra coisa que desacredita as suas pretensões; ergue a sua cabeça para ajuizar a própria hipótese que foi concebida para o pôr no seu lugar. O raciocínio reaparece inevitavelmente porque essa questão convida à questão seguinte: “Que razão temos para pensar que o mundo é realmente assim?” As alternativas têm sempre de competir com a possibilidade de as coisas serem mais ou menos como parece que são — uma possibilidade que pode muitas vezes ser derrotada, mas apenas por razões que a tornam menos credível do que uma das alternativas.
Isto torna muito difícil desalojar a ideia de uma ordem natural, assim como a procura a ela associada de regularidades subjacentes ao que observamos. À proposta de que a ordem que aparentemente descobrimos não passa de um quadro de referência que impomos à experiência, a resposta inevitável e nada excitante é a de que isso não parece uma explicação particularmente provável dos factos observados — e que uma explicação mais plausível é que, em grande parte, a ordem que encontramos na nossa experiência é o produto de uma ordem exterior, independente das nossas mentes. Aplicado a qualquer aspecto real da ordem natural, a interpretação kantiana parece bizarra. Por exemplo, não é plausível encarar o sistema minucioso de leis químicas resumido na tabela periódica dos elementos como um resultado das exigências impostas à experiência humana pelas condições de possibilidade para ter como objectos coisas que existam no tempo, quer seja sucessivamente, quer seja simultaneamente.
Esta avaliação adversa baseia-se precisamente, é claro, no tipo de ideia sobre a ordem natural que está a ser posto em questão; mas é inevitável e, portanto, não é uma petição de princípio num sentido que o torne vácuo. A proposta de que o raciocínio científico nada nos diz sobre a realidade é em si uma hipótese sobre o mundo e não pode, pura e simplesmente, fazer-nos parar de pensar, tal como uma teoria reducionista e psicológica da matemática ou da ética não pode fazer-nos parar de pensar sobre a aritmética ou sobre o bem e o mal. Não há um metanível puro no qual esta discussão possa ser levada a cabo: as teorias de segunda ordem não podem evitar competir com o conteúdo daquilo que estão a tentar reduzir ou colocar nos seus devidos termos.
Mal deixamos para trás a condição puramente animal e reflectimos sobre as nossas próprias impressões, somos confrontados com duas possibilidades. Ou decidimos que são correctas — ou que vale pelo menos a pena mantê-las — ou podemos decidir que são em alguns aspectos erróneas e que precisam de ser alteradas. Mas em qualquer caso só podemos fazê-lo a partir de uma nova concepção do mundo no qual nos situamos. Não temos a opção ininteligível de reflectir sobre a nossa concepção anterior do mundo a partir de um ponto de vista que não inclua uma concepção do mundo. O quadro exterior de qualquer perspectiva de nós mesmos, por mais sofisticado e auto-reflexivo que seja, tem de consistir em ideias que não são subjectivas, adoptados sem rodeias. Não dispomos de nada mais, excepto do absurdo vazio — coisa de que sempre dispomos.
Ao colocarmo-nos no mundo e ao encararmos o que podemos observar como uma amostra do todo, podemos descobrir ou não uma ordem que esclareça essa amostra em termos mais universais. O facto de a nossa inegável sede intelectual por essa ordem não garantir que exista, nem garantir que, caso exista, a poderemos descobrir pela combinação da percepção e do pensamento, é um sintoma importante da objectividade da capacidade de concepção. Mas quando descobrimos realmente essa ordem, como tem acontecido em vários ramos das ciências da natureza, é completamente implausível declarar que é imposta pelas condições da nossa própria experiência, quanto mais pela concordância entre observadores.
Uma coisa dessas pode acontecer, se a experiência for esmagadoramente influenciada por um conjunto inato ou adquirido de categorias; mas quando isso acontece trata-se de um facto sobre o mundo, facto esse que pode ser investigado por meio de pensamento e experiência complementares — trata-se de um facto sobre os poderes causais de certas aparências e não uma condição a priori da sua possibilidade. Na ausência de razões para acreditar numa tal influência que nos conduza na direcção errada, a suposição de que a ordem que inferimos das nossas observações é uma ordem do mundo real, no qual estamos contidos, torna-se a suposição natural. Está sujeita a ser continuamente burilada, à medida que fazemos mais descobertas e que eliminamos mais distorções — mas seja como for que dividamos as contribuições do mundo exterior e da nossa própria perspectiva, o resultado é uma concepção de como é o mundo, incluindo nós mesmos.
Este é outro exemplo do fenómeno da dominância, a dominância de formas gerais de raciocínio empírico sobre qualquer hipótese psicológica específica, ou mesmo metafísica, sobre a explicação desse raciocínio. Seja o que for que se proponha, temos o direito de perguntar — não podemos evitar perguntar — se a proposta é sustentada pelos dados. Mesmo que a proposta seja especificamente concebida para fornecer uma explicação que desacredite certos métodos de tirar conclusões a partir de dados, não pode por esse meio isentar-se a si mesma de ser avaliada por esses métodos.
É inteiramente possível que por vezes um desafio deste tipo consiga destruir a nossa confiança em certos métodos de raciocínio, resultando daí que esses métodos não conseguirão derrotar a proposta, ainda que pareçam ditar a sua rejeição. Mas isso só acontecerá se, ao considerar a proposta, formos convencidos da sua verdade por outros métodos de raciocínio — métodos que formos obrigados a usar pelo seu próprio valor quando somos confrontados com o argumento e que nos forneçam qualquer coisa nova para pensar.
Penso que o idealismo transcendental de Kant não passa este teste porque quando perguntamos se é, com base em todos os dados, e contrariamente à sua intenção, uma perspectiva credível do mundo e da natureza do conhecimento que temos dele, descobrimos que o nosso relapso raciocínio empírico e científico persiste em toda a sua força e não reduz as suas pretensões realistas face a este desafio. Continua a oferecer-nos boas razões a favor de crenças que não são apenas sobre o mundo dos fenómenos, crenças cujo conteúdo contradiz directamente o que Kant ofereceu como uma análise a priori dos limites da razão — e que derrotam a sua análise se não puderem ser racionalmente desalojadas.
Não é fácil explicar o carácter lógico desta oposição. Cada lado da disputa, para refutar o desafio lançado pelo o outro, está a usar precisamente os métodos que estão a ser colocados em causa pelo outro lado, pelo que parece que ninguém poderia jamais ganhar. Mas isso não se segue. Confrontados com esse empate aparente temos, pura e simplesmente, de continuar a pensar sobre a disputa e de decidir qual das linhas de raciocínio é superior. A conclusão da discussão encontra-se apenas nos próprios argumentos a que não podemos resistir — não, note-se, no facto de não lhes podermos resistir, mas no seu conteúdo. A afirmação de Kant de que o raciocínio só nos fala do mundo dos fenómenos é empiricamente incredível, em função dos dados — e o que é empiricamente incredível é incredível, sem mais.
Neste, como noutros casos, um desafio às pretensões universais da razão tem de propor uma alternativa que possa ser o objecto de algo como a crença ou, pelo menos, de aceitação; mas não dispomos de nenhuma. Não há nada a que possamos apelar, em definitivo, quando propomos às pessoas que aceitem uma ideia, excepto que devem pensar sobre ela; e o pensamento acaba sempre por conduzir ao raciocínio que, nos seus limites mais afastados do centro, procura ser universalmente válido e descobrir a verdade não-relativa. Por mais que tentemos, não há lugar algum no qual possamos escapar às pretensões da razão humana. Se tentarmos reinterpretá-la de maneira mais modesta, descobrimos que estamos inevitavelmente condenados, ao executar o projecto, a formar crenças de um tipo qualquer sobre o mundo e sobre o nosso lugar nele — e isso só se pode fazer entregando-nos ao pensamento irrestrito.